sábado, 15 de dezembro de 2007

DEPOIS DO NADA

Silenciosamente perderam-se os passos
Raivosamente secaram-se os prantos
Convulsivamente calaram-se as vozes
E ficou deserta a terra desfolhada
***
Dizem que depois do nada
Só há morte

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

CLASSES E PRECONCEITOS

Não devia haver classe sociais. Aliás sempre achei que não havia. Não pertencemos todos ao género humano sem distinção de raças ou de credos? Por quê então considerar pessoas como sendo do outro lado? Como não fazendo parte da família humana? Era assim que eu pensava mesmo quando via grandes diferenças na forma como viviam certas pessoas. Tinha pena que fosse assim mas nunca subestimei essas pessoas.

Talvez esta visão fosse muito ingénua e eu demasiado bem intencionada. Porém a vida tratou de me fazer menos boa e de mostrar-me que afinal existiam classes. E não só existiam como as pessoas as sentiam e se sentiam de maneira diferente.

E foi o meu marido que me ensinou tudo isso. E ensinou-me de uma maneira crua que eu não estava preparada para aprender. Porque acreditava no companheirismo que me levou a casar num dia 7 de Junho de um ano qualquer. Numa cerimónia no registo que não demorou mais que 7 minutos. Não levámos convidados e até nos esquecemos de levar padrinhos. Tivemos que arranjar dois voluntários à pressa que serviram para mim e para ele. Eu vestia as minhas jeans surradas bem diferentes do vestido de noiva tradicional mas estava quase feliz. Estupidamente feliz por procurar caminhar em sintonia com um desconhecido que, por uma razão qualquer, se cruzou num dado momento no meu caminho. Um momento de fragilidade, diga-se em abono da verdade. E em momentos de fragilidade ama-se o amor mais do que a pessoa.

Porém quando comecei a olhar para a pessoa e a interrogar-me sobre ela descobri que tinha medo. Medo do homem que tinha estado na guerra. Medo do homem que vinha medalhado e com cruz de guerra por ter matado. Olhava-lhe para as mãos e pensava que tudo me era estranho que não havia refúgio dentro de mim própria.

Este ser que me amava, ou que dizia amar-me, tinha dentro de si todo um conjunto de sentimentos tumultuosos. E eu estava no centro desse tumulto. Da paixão doentia que lhe despertava. Da sua submissão extrema e seus desvelos exagerados, do seu ódio profundo e do seu incomensurável sentido de revolta.

Se a aceitação entre mim e a família dele foi aberta e natural entre ele e a minha tudo foi diferente. Ele ia de pé atrás contra a família "burguesa," inimiga das pessoas como ele, e responsável de todos os males que lhe tinham sucedido. Ele defendia, com ódio, a desigualdade em que os ricos apareciam como verdeiros cafajestes que despojavam os pobres dos bens e da alma em proveito das suas futilidades. Era como se os meus pais e eu tivessemos a culpa que ele tivesse ido aos catorze anos para a escola e se formasse em economia e não em medicina como teria desejado.

Os ataques sistemáticos à minha família, a forma como gozava a minha mãe, tudo me doía sobremaneira, porque, mal ou bem, aquelas eram as minhas raízes por muitas e longas que fossem as paragens em sítios distantes.

E um sentimento, que antes não existia em mim, começou a criar forma. É que também agora eu odiava tudo aquilo que ele representava, os ideais que defendia e as coisas que gostava.

A minha capacidade de amar e compreender esgotava-se de dia para dia perante tanta intransigência. A minha sogra chamava-lhe a atenção mas ele não queria saber.

O que parecia vir a ser um relacionamento tranquilo passou a deslizar entre dois extremos: o de uma dedicação absoluta e de uma raiva latente pronta a explodir ao menor passo em falso.

E nada o fazia mudar. Nem mesmo o nascimento do filho. Apesar de excelente pai, colaborante nas tarefas e nas responsabilidades, ele vivia para me contrariar e, uma vez, frente ao meu filho, ousou bater-me quando o desafiei.

A partir daí começámos a viver com alguma independência. Eu tinha-me licenciado e estava agora numa posição profissional que me ocupava mais tempo fora de casa. E eu própria procurava prolongar esse tempo. Ele tomava conta da casa e deixava-me ir. Comecei a sair e mesmo a viajar sozinha porque com ele era um verdeiro tormento. Apesar disso o casamento durou 17 anos e as relações não passaram de simples amizades.

Às vezes dava comigo a desejar algo diferente a olhar para outros casais que passavam por períodos apaixonados. E interrogava-me como seria sentir algo assim. Algo sem forma nem objecto preciso coexistia comigo, sonhava e amava o infinito e sofria por não ser encontrado.

Porém não era infeliz. Encontrei uma forma de vida que, a determinada altura, quase me satisfazia. E quando pensei que a vida seria mesmo isso essa adaptação permanente, sem grandes sobressaltos nem contrapartidas, encontrei alguém que iria dar início a um novo ciclo.

Àlguém a quem quis de forma absoluta. Mas, ao contrário do que o meu marido me disse, não procurava no outro o mundo burguês da minha infância. Porque esse era um mundo do qual levei a vida a fugir.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

UM NATAL DIFERENTE

Era o primeiro Natal que passava fora de casa. Foram dez meses a tentar sobreviver com o que ganhava no escritório. Porém a vida era muito mais difícil, do que as minhas piores previsões, quando decidira fazer-me à estrada. O dinheiro que trouxe rapidamente se esgotou. Tive que pagar a pensão adiantado, comer e pagar transportes durante um mês antes de receber e, ainda, comprar livros e fotocópias para a faculdade. Foi como se o meu mundo ruísse antes de o construir.
As luzes e os enfeites do Natal faziam-me sentir terrivelmente só. No bolso do casaco uma carta em que a minha mãe me falava como se eu estivesse na maior. Só mesmo a minha mãe para desconhecer o quanto a vida era dura fora do mundo artificial onde sempre vivera!..
Ao deixar a terra e a família jamais poderia imaginar quanta coisa perderia pelo caminho. Contando os tostões e, sem eira nem beira, era como se tivesse perdido outros atributos do passado. Nenhuma das pessoas, que antes me adulava, me voltava a procurar quando me encontrava ainda que, por delicadeza, me pedisse a morada ou o telefone. Apenas com uma única excepção. Nessa altura, enchi-me de brios e fiz questão de pagar o almoço num restaurante incompatível com a minha bolsa. Esta temeridade deixou-me em dificuldades o mês inteiro e nunca mais a repeti.
Luzes, montras enfeitadas, pessoas que cruzavam comigo carregadas de embrulhos. E, dentro do meu bolso, uma única moeda que dava à justa para um café.
Recordo, também, a carta insultuosa do meu pai e que rasguei sem acabar de ler.
E tudo porque quis viver igual a mim própria, trabalhando e sentindo como qualquer pessoa normal.
Gostava de caminhar livremente mas nunca pensei que as ruas fossem tão longas!...
Às vezes a solidão doía tanto, e as dificuldades eram tão intensas, que me chegava uma vontade imensa de voltar. Mas, ao lembrar-me quão pouco me valorizavam por mim própria, optava sempre por não ceder.
Mas estava a ser difícil juntar os cacos e fazer alguma coisa do que sobrara de mim.
Raio de Natal aquele que me fazia sentir tão sozinha!....
Por momentos imaginei a minha bela mãe em frente a uma mesa cheia de iguarias dizendo aquelas futilidades do costume. E o meu pai a oferecer-lhe uma jóia ou um vestido para atenuar as desconfianças sobre as infidelidades que eram constantes. Lembrei-me da minha avó e um nó formou-se-me na garganta. Era a única de quem tinha saudades.
De súbito avisto ao longe um colega de faculdade uns 6 anos mais velho que eu. Também era trabalhador estudante mas estava numa situação um pouco melhor porque trabalhava num Banco. Eu detestava-o por ele me andar sempre a espiar e a aparecer em tudo o que era sítio. Queria estar sozinha e aquelas interferências incomodavam-me de sobremaneira. Porém, naquela antevéspera de Natal em que o frio e a solidão me entorpeciam, mesmo um simulacro de calor humano era bem vindo.
-Olá, diz-me ele
-Olá, digo eu.
- Não vais passar o Natal com a família?
- Não, não tenho para onde ir passar o Natal. E até consigo sorrir quando acrescento: - Se morresse esta noite ninguém dava pela minha falta. Talvez a dona da pensão, acrescento, o único sítio que tenho para onde ir.
Ele aproxima-se e põe-me a mão no braço e olhando-me nos olhos diz esta frase surpreendente:
- Fica comigo e casa comigo.
Olho-o perplexa mas logo ele acrescenta:
- Preciso de ti.
E foi esta última frase que me fez decidir. Não teria suportado uma declaração de amor nem qualquer coisa do género. Apenas a necessidade de partilha de uma noite fria e solitária.
Nesse dia passámos a viver juntos e três meses depois estávamos casados.
Porém aqueles momentos que nos igualaram foram apenas resultado de momentos. Porque viria o dia em que as pessoas que fomos antes apareceriam para nos cobrar o abrirmos mão do passado.
E nenhum de nós estaria preparado para isso.

domingo, 11 de novembro de 2007

FOI TARDE

Foram muitos os dias, vindos da infância, passados na quinta de uns tios meus, nos arredores de Faro. Era uma propriedade esplendorosa, que se estendia por montes arborizados, ostentando um laranjal que, em tempos, abasteceu as fábricas de sumol do Algarve. Ali, com o cheiro da terra, e o contacto com outras vidas, se fez a minha sensibilidade. Talvez esta forma de ser, sonhadora, tenha sido formada por um sol que se espraiva pelas encostas onde as árvores, e plantações, sobressaíam e por onde, muitas vezes, eu passava para ir no barco ancorado a escassos metros.
Poderiam ter sido dias, quase felizes, se eu não fosse da família dos patrões e se isso não me empurrasse para um lado da vida que eu não queria. Poderiam ter sido dias, quase felizes, se pudesse correr e subir às árvores como as outras crianças. Mas eu não era como as outras crianças e isso fazia-me sofrer.
Não conseguia gostar daquilo que queriam que eu gostasse. Não conseguia aprender piano nem ser menina de bem. Apenas queria viver. E viver com emoções fortes, como eu as sentia, sem ser indiferente ao que me rodeava.
Há sempre um acontecimento que altera a sequência de todos os que se seguem. Este deu-se, quando tinha 11 anos, e a minha tia apresentou a mais recente aquisição da propriedade. Tratava-se de um garoto franzino, de olhos grandes e redondos, uns dois anos mais velho que eu. Chamava-se Ilídio e vinha de uma terra alentejana, para mim, desconhecida. Apesar de me recomendarem uma certa distância, em relação aos trabalhadores, depressa me tornei amiga do Ilídio. Soube, assim, que ele tinha 9 irmãos e que passavam fome. Soube também da sua vontade de continuar a estudar. Passei a emprestar-lhe livros, que ele devorava, e ensinava-lhe algumas matérias que aprendia no liceu. Mas esta amizade inocente, que não passara despercebida aos meus tios, estava inevitavelmente condenada. O ensejo apareceu quando o Ilídio foi fazer umas compras para a lavoura. Acusaram-no de roubar embora eu acreditasse, piamente, que estava inocente. E, assim, numa tarde de Agosto, dois dias após eu ter completado 12 anos, Ilídio foi mandado embora com uma pequena trouxa onde cabiam todos os seus pertences. Tinha apenas 14 anos e chorava. Ainda o vejo a subir, sozinho, o morro dos montes, em direcção à paragem do autocarro que o levaria às suas origens. E ainda sinto a mesma revolta que me incendiou, na altura, e fez com que os meus olhos ficassem enxutos.
E foi, nessa altura, que jurei a mim própria que partiria. E que um dia iria procurar o Ilídio.
Porém foram precisos mais 6 anos para dar o primeiro passo. Tinha entrado na Faculdade de Direito e os meus pais compraram-me um renault 16 branco, novinho em folha. Porém, eu não via o carro mas a emancipação, que o meu pai me concedeu, para tirar a carta (a maioridade só se atingia aos 21 anos).
E, assim, quando parti para Lisboa, em vez da Faculdade, fui trabalhar. Os estudos ficaram para trás, os cursos foram outros e as condições de vida bem agrestes. A ginástica para sobreviver era difícil, como difícil era abdicar de tudo a que estava habituada. O curso era tirado à noite, com dificuldades acrescidas e, por vezes, mal alimentada. Pouco tempo depois casava-me com um colega de Faculdade tão pouco abonado quanto eu.
Porém, nunca deixei de procurar o Ilídio embora muito pouco soubesse sobre ele. Escrevi para diferentes autarquias, procurei em listas de recrutas mas os meus recursos eram agora muito limitados. Sem dinheiro nem influências muitas portas, que antes estavam abertas, se tornaram intransponíveis. Mas todos os esforços pareciam inúteis.
Com o 25 de Abril os trabalhadores foram abandonando a propriedade dos meus tios. Por mero acaso, encontrei um deles, em Lisboa, que me disse que o Ilídio tinha morrido tuberculoso mas que tinha tomado conhecimento que eu o procurava.
Em estado de choque ainda pergunto: - Mas se ele soube porque não me deixou encontrá-lo?
- Por vergonha, menina, respondeu o meu velho Mateus.
- Vergonha? Ele?
- Pois, o que é que a menina quer? Pobre é assim!....
Ah mas não haverá um mundo em que não haja pobres para serem assim?, pergunto a mim mesma. Porém esta interrogação espalhou-se pelo tempo dos muitos anos que se seguiram. Anos de avanços e recuos. Anos em que, depois da conquista, entreguei de mão beijada os meus troféus.
Sim, porque o mundo é grande e nós somos pequenos. E as distancias dentro de nós são curtas.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

DESPERTAR

Confesso que vivi, diz Pablo Neruda. E eu também. Feito um balanço dos anos decorridos sinto que foram vividos de punho aberto, ricos em experiências e em diversidade. Acho que vivi várias vidas numa só vida e, por isso, costumo dizer: quando partir não me chorem.
Fui filha única numa família que tinha recursos acima da média. Quando fui para a escola, uma escola oficial que não distava muito da casa dos meus pais, tive que tomar contacto com outras crianças que viviam com dificuldades. Essas crianças, recomendavam os meus progenitores, são crianças "malcriadas" com as quais não me devia relacionar. Não fico convencida com as recomendações e até gosto daquelas crianças soltas, que dizem o que sentem e brincam, riem e zangam-se consoante a vontade. Porém, mal chego à escola, a professora imediatamente me tira todas as ilusões de uma aproximação.
A filha do sr.engenheiro não pode ser contaminada por aqueles seres impuros e, assim sendo, senta-me na primeira carteira (lugar de honra) tal como a outras crianças provenientes de certas famílias. Depois, deixa uma fila vaga, na horizontal, e, a seguir, senta as outras. Apesar dos meus 7 anos olho, com revolta, para aquela disposição e os meus olhos caem sobre uma garota mais velha que, desde que chegara, não desviava de mim a atenção. Era uma miúda repetente, e alta para a idade, com umas sandálias extremamente velhas, e cozidas com corda, que usava sem meias em pleno Inverno. O cabelo era preto e mal penteado e as roupas velhas e pouco limpas. Chamavam-lhe a "lebre que foge p´ra toca" porque ela fugia, frequentemente, para uma toca onde se refugiava dos maus tratos da casa e da escola. Poucas meninas, e apenas as do grupo detrás, se aproximavam desta criança de 9 anos.
Quando tocava para o recreio a professora garantia, com severidade, a separação dos grupos e eu comia o meu farnel, sem qualquer apetite. Porém "lebre que foge p´ra toca" não tira os olhos dos meus movimentos e do meu lanche enquanto retira, de um guardanapo amassado, um bocado de pão muito escuro, pingado em banha ou em azeite. Porém, aquele pão, de uma qualidade rústica que nunca entrara em minha casa, era também, para mim, de grande atracção. E, assim, passávamos o lanche a olhar uma para a outra e sem tirarmos os olhos do que cada uma comia. A vontade de trocar o farnel começou a criar forma em mim e nela mas a professora, sempre atenta, não dava oportunidade. Porém, um dia, em que uma aluna se magoou a jogar à cabra-cega, o meu lanche foi ter às mãos de "lebre que foge p´ra toca" enquanto o pão, escuro e engordurado, passou para as minhas mãos. Comemos os nossos lanches com um apetite, jamais igualado, todavia, eu fiquei com o guardanapo de xadrez vermelho da "lebre que foge p´ra toca" o que me denunciou.
A professora depois de ter batido desalmadamente à "lebre que foge p´ra toca"(embora a mim nem sequer tenha encostado um dedo), achou por bem avisar o senhor meu pai desta "lamentável" ocorrência. O meu pai ficou possesso mas não costumava passar à acção. Por isso, pôs a minha mãe ao corrente para que esta pudesse actuar. Depois de uma valente tareia, acrescentada por pequenos castigos e palavras duras, retomei os meus lanches, sem voltar a trocá-los, e sem compreender o motivo porque não devia fazê-lo.
Todavia a marca de uma injustiça, que é indelével na alma de uma criança, essa ficou sempre a germinar. E eu sonhava, a olhar o mar e os barcos que partiam, com outros mundos que me chamariam e que iria desbravar sem medo de repartir o pão, sem medo de brincar, sem medo de me encontrar.
E eu fui por esses mundos mas nós voltamos sempre aos mesmos lugares. E foi num desses regressos, num passado recente, que soube da "lebre que foge p´ra toca" que, afinal, se chama Cecília. E soube que ela manifestou, a familiares meus, um grande desejo de me voltar a ver. Tantos anos se passaram sobre as nossas vidas, que era já impossível reconhecermo-nos, a não ser através de um farnel trocado algures no tempo.
Curiosamente, Cecília reconheceu-me, de imediato, mal entrei no café onde me aguardava.
Sorriu com lágrimas e olhando-me nos olhos perguntou: -Ainda trocavas o lanche? -Ainda, respondo eu.
E, pela primeira vez, pudemos abraçar-nos.

sábado, 3 de novembro de 2007

Gente solidária

O episódio que vou contar passa-se em Barrancos já lá vão 22 anos. Hoje Barrancos está diferente. Desde o dia em que a água começou a correr das torneiras, ao som da sambomba e dos foguetes - enquanto o aguadeiro se suicidava, perdida a vontade de viver numa realidade que o excluía -, que um novo ciclo foi iniciado. Mas, eu reporto-me a esse passado distante, em que passava lá uma parte das férias, e em que aprendi a arte de pescar o achegã.
Depois de "empatar os anzóis, colocar as bóias e arranjar o isco fomos pescar: eu, o meu marido, o meu filho de 7 anos, o meu sogro e mais um velhote a quem baptizei de Cafum-Cafum por estar sempre a tossir. O percurso, até à barragem, era feito por caminhos de terra batida. Apesar de nunca ter pescado, era eu quem apanhava mais peixe. E, para isso, havia um segredo. Cafum-Cafum conhecia os sítios onde a pescaria dava e preparava, antecipadamente, uns engodos que atirava para a água nos lugares onde me aconselhava a pescar. A cada lançamento chegavam a vir aos três e quatro achegãs. Eu fazia, assim, inveja a outros pescadores que não percebiam como é que eu apanhava tanto peixe. Cafum-Cafum ria, e eu também, porque aquele era um segredo entre nós. Chegados a casa repartíamos a pesca de forma a ninguém ficar desprevenido.
Naquela manhã o meu sogro e o meu marido optaram por um ponto do rio que distava do lugar onde fiquei com o meu filho e Cafum-Cafum. As margens do rio formavam pequenos charcos xistosos por onde nadavam peixes, cagados, cobras de água e outros viventes próprios do lugar. Recomendei ao meu filho que mantivesse as sandálias calçadas, mas, num ápice, ele tira-as para chapinhar na água e, logo a seguir, grita e vejo-lhe um corte, a todo o comprimento, na sola do pé.
O pânico apodera-se de mim. Porque só sou forte quando não se trata do meu filho. O corte era grande e fundo e sangrava bastante. Ás vezes ele tinha hemorragias e a vacina do tétano estava caducada.
Seguro-o, embrulhado à toalha, e peço a Cafum-Cafum que avise o meu sogro e o meu marido. E logo me arrisco a conduzir sozinha, por carreiros de cabras e propriedades de touros bravos, nos 12 km mais longos de toda a minha vida. O receio de me enganar naqueles caminhos confusos, e a necessidade de transmitir calma ao garoto, absorviam todas as minhas forças. Quase chorei quando avistei o casario e tive a certeza que iria chegar.
Foi só o tempo de tirar as roupas enlameadas e, logo eu e a minha sogra, nos dirigimos ao posto médico o único a que podia recorrer. Mal entrei a angústia dominou-me por completo. Tinha havido um acidente com um camião de trabalhadores e havia várias pessoas feridas. Mais uma mulher que se cortou com vidros e ainda um homem que tinha apanhado uma cornada de uma vaca. Um calor fétido e um cheiro a suor provocavam-me náuseas que procurava, a todo o custo, controlar. Só havia um único médico para toda aquela gente.
Chovem perguntas, quando me vêem entrar, e a minha sogra explica o que aconteceu. Sinto a garganta seca e sem forças para falar. Eis que então sucede algo que nunca esquecerei em toda a minha vida. Todas aquelas pessoas feridas me deram a vez.
Entrei num consultório amplo onde a temperatura devia rondar os 40 graus. Ao centro o médico, com cerca de 35 anos, passa as mãos na testa com ar desconfortado. E diz-me após lhe ter explicado a situação:
- Só me faltava mais esta. Hoje é o dia em que tudo acontece. E, para maior azar, a enfermeira foi fazer um parto à Herdade da Loba.
Nisto, uma ideia lhe ocorre. -Mas é duma pessoa como você que estou a precisar. Olhe, enxote-me estas moscas, deite o seu filho na marquesa, abra aquele armário, traga-me aquela pinça. Um novo pânico apodera-se de mim. É que não consigo ver sangue nem agulhas. Mas penso: se desmaiar já estou no gabinete do médico. Mas não desmaiei e consegui segurar o meu filho enquanto o pé era suturado e lhe era injectado o antibiótico e a vacina.
A seguir entreguei-o à minha sogra e ao meu marido, que entretanto tinha chegado, e fiquei no posto a auxiliar o médico até que todos os que estavam na sala fossem atendidos. Era o mínimo que podia fazer por aquela gente que, de forma tão altruísta, me tinha dado a vez.
Quando saí do consultório era já noite. Uma noite calma e morna como as noites alentejanas. Muitas pessoas estavam sentadas à porta e havia quem entoasse canções à moda barranquenha.
E, curiosamente, apesar do dia estafante não estava cansada.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

COMO SE CRIAM RAÍZES

Barrancos, tal como o nome indica, situa-se entre montes e ravinas. Após uma meia hora de curvas apertadas, que antecedem a chegada a esta vila alentejana, ela aparece com todo o seu esplendor. Um casario branquinho, com ruas estreitinhas, recebe os forasteiros com um ar simultaneamente cordial e desconfiado. Mais próxima da espanhola Ensinasola, que de qualquer povoação portuguesa, esta vila tem características muito próprias quer em termos de tradições, cultura e até de dialecto.
Conheci Barrancos quando me casei, já lá vão mais de trinta anos, e logo me apaixonei por aquele lugar único, onde se ouve o cantar dos pássaros e o marulhar das fontes, onde os rios correm sem pressa e onde as pessoas entram pelas casas umas das outras sem pedir licença.
Porém, para entrar e viver nesta comunidade é preciso passar por todo um conjunto de provas e etapas. Quando se chega é-se olhado como avis rara. E, ao caminharmos pelas ruas empedradas, se subitamente nos voltarmos, verificamos todos os batentes das janelas a fecharem. Rostos que nos espiam mas também nos amam quando acreditam em nós.
A primeira vez que lá pernoitei acordei, pela manhã, com o sino da igreja a repercurtir as suas badaladas pelos montes e a nos fazer sentir a alma lavada de tão forte. Junto à lareira a minha sogra tinha esmerado a sua arte em tortas e enchidos e o café, feito no pote de barro, quedava quentinho na lareira.
Porém, para uma cidatina habituada à bica, por melhor que fossem os pitéus, a falta de cafeína era absolutamente intolerável. Os meus sogros indicaram-me um sítio onde podia tomar café expresso. Era na sociedade dos pobres, mesmo em frente à sociedade dos ricos. Era só descer a rua, não havia como enganar. Pareceu-me ver no rosto deles, tal como no do meu marido - que não me acompanhou -, um ar de gozo. Bem, mas devia ser só impressão minha, pensei.
Desço a rua e entro na sociedade onde cerca de uma dúzia de homens estavam sentados às mesas. Chego ao balcão, vejo a grande máquina de café, e peço a minha bica com o coração aos pulos. Mas o senhor do balcão estava completamente indiferente à minha ansiedade pelo café, entretido a preparar pires e mais pires de tapas e copitos e mais copitos de vinho branco. E eu toca de esperar. E ele toca de não me ligar nenhuma. Quando já estava quase a lembrar-lhe que tinha pedido um café ele pôs junto a mim, no balcão, os 13 copitos de vinho branco e os 13 pires de tapas que tinha estado a preparar. Explicou-me então que, quando qualquer forasteiro entrava naquela sociedade, pela primeira vez, era tradição que cada um dos presentes lhe oferecesse um copito de vinho e um pires de tapas. O forasteiro deveria aceitar todas as tapas e copitos e, depois de comer e beber, deveria oferecer uma rodada aos presentes.
Parece que, tirando a mulher do Presidente da Câmara (e essa era da terra), nenhuma outra tinha entrado assim sozinha na dita sociedade. Eu era portanto a primeira a submeter-me à prova.
Assim sendo, bebi os 13 copitos de vinho branco, comi os 13 pires de tapas tomei o meu tão desejado café e paguei a rodada.
E ... passei todo o resto do dia com a minha sogra a fazer-me chá e a pôr-me rodelas de batata na cabeça.
Porém tinha dado um enorme passo na aceitação.

domingo, 28 de outubro de 2007

METAMORFOSE

Quando nos apaixonamos sentimos que tudo adquire uma dimensão nova. Olhamos as mesmas coisas com outros olhos e, mesmo aquilo que nos faria rir se não estivéssemos apaixonados, passa a ser a coisa mais natural deste mundo. É o desabrochar de uma interioridade onde tudo parece estar certo. A nossa sensibilidade fica mais atenta a pormenores que antes nos eram indiferentes. As sensações e as aprendizagens multiplicam-se e nasce, como por encanto, uma capacidade inovadora, valências nunca antes imaginadas, forças até então adormecidas. Por tudo isto eu passei, quase a entrar nos entas, e por tudo isto enfrentei todas as guerras e tempestades. Cortei com o casamento, com os amigos, com familiares, com tudo o que constituíra toda a minha vida. Cortei até comigo própria como se não houvesse outro caminho à minha frente.
Pouco tempo depois de conhecer o Joaquim estávamos a viver juntos. Esperámos pouco mais de seis meses até nos divorciarmos. Eu fiquei com o meu filho e essa foi a única coisa que não perdi.
Porque a minha entrega foi tão completa que não sobrou espaço para mim. Nem mesmo a ilusão de poder ser eu.
Já não era a mulher irreverente, e sempre bem disposta, com a resposta pronta e a espontaneidade presente. Agora media as palavras, e os gestos, e os meus olhos ficaram baços e frios. As roupas informais, ou de um bom gosto simples, deram lugar a modelos de estilistas da praça que me descaracterizavam e davam um ar, aos meus olhos, fútil. A licenciatura também já não bastava e, por isso, tirei outro curso e especializações, sem saber bem para que serviam, só porque o Joaquim me incitava a tirar. Apostei na carreira, matriculei-me num partido e até ia a missas, casamentos e funerais, sem ser crente, e fazendo o frete, só porque ele fazia questão que fosse. Eu já não existia como pessoa. Era apenas uma extensão dele. E ele era um homem que vivia para o status, o poder e o dinheiro. A princípio eu não via, ou não queria ver. Porém, aos poucos, o meu deus foi mostrando os seus pés de barro e a cair do altar onde eu o idolatrara.
Ao fim de seis anos já não aguentava mais festas e banquetes nem conhecer mais pessoas vazias e desinteressantes. Joaquim sugeria-me, de vez em quando, que seria "conveniente" casarmos. Porém, o meu sonho de viver com ele, para todo o sempre, estava cada dia mais ameaçado. Mas, foi numa certa manhã de domingo em que, na missa, procurava ocultar a minha falta de jeito, e de crença, para lidar com o missal e entoar os salmos, que sofreu um rombo irreversível. Era um suplício que me envergonhava isto de ter que o acompanhar à missa. Sentia que tudo aquilo era rídiculo e, por mais que olhasse para o altar à procura de Deus, a fé nunca me chegava. Curiosamente, ele também não acreditava. Ia para aparecer e falar com pessoas influentes. Eu também não entendia porque é que ele precisava de conhecer tanta gente, de ter uma empresa, ser administrador de outra do Estado e ainda dar aulas na Faculdade. Nada para mim fazia sentido mas, mesmo assim, ainda lhe dedicava uma devoção sem limites que não me permitia encarar a vida sem ele. Naquela tarde tinhamo-nos zangado pela primeira vez. Ele tinha-me admoestado sobre o meu comportamento na missa e tinha voltado a insistir na ideia do casamento. As lágrimas quase me saltaram e não sou de chorar. A ele não lhe passou despercebida a minha angústia e, como muitas vezes fazia, foi buscar-me um ramo de flores amarelas, campestres, que uma vez lhe disse que gostava. Mas eu gostava daquelas flores espalhadas pelos campos, com as raízes presas à terra. Vê-las cortadas e a morrer nas jarras era para mim motivo de desgosto.
Foi quando me estava a vestir para mais um jantar, e olhei a minha figura reflectida no espelho, que me dei conta que aquela mulher não era eu. E pela primeira vez apercebi-me que ia começar a odiá-lo. E eu precisava amá-lo para que a vida tivesse sentido.
Só havia uma forma de conservar o que de muito especial tínhamos tido. Momentos inigualáveis dos quais nunca me arrependi.
Ele não fez nada para me reter. Apenas me pediu que esperasse uns três dias para eu sair quando ele estivesse ausente no estrangeiro. Contudo, mal deu de costas, procurei pôr tudo em ordem e não esperar pelo seu regresso. A tarefa estava facilitada pelo facto de nunca me ter desfeito da minha casa e ter trazido para esta poucos dos meus pertences. Procurei não levar nada que fosse valioso, nem mesmo roupas. Uma ou outra coisa simbólica talvez. As ilusões precisam de um espaço grande mas as realidades cabiam numa mala pequena. Uma mala que fechei sem que a mão me tremesse.
Apesar de ter sido a pessoa mais importante da minha vida, foi também aquela de quem mais me afastei. Apaguei dele todos os registos das minhas agendas, mudei os números de telefone e emiti todos os sinais de que não queria ser encontrada.
Só nos voltámos a ver cerca de três anos depois. E por acaso na exposição do corpo humano. Soube então que, tal como eu, continuava sozinho. Porém o seu ar era o de uma pessoa que queria e sabia o caminho que trilhava. A separação imprimiu em cada um de nós marcas que nos demarcavam. De jeans e mala ao tiracolo, eu nada tinha a ver com aquele homem elegante e sofisticado. Demos de caras e ele riu olhando-me de alto a baixo: - Agora és mesmo tu! E eu respondi: E tu também agora és mesmo tu! Ele ficou sério mas depois com aquele sorriso lento que me amolecia disse olhando-me nos olhos: - Eu não teria assim tanta certeza.
Despedi-me apressada e recusei o convite para o café. Senti que ainda havia algum fogo sob as cinzas. Um fogo que, no meu caso, não pretendia apagar e, muito menos ainda, reacender.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

UMA PRENDA INVULGAR

O dia estava a ser difícil. Duas funcionárias estavam de baixa, havia o correio por organizar e, para cúmulo, o motorista ainda não aparecera e já passava das 11h-00. Como uma desgraça nunca vem só os telefones não paravam de tocar porque tinha havido uma avaria, num terminal, e era um pandemónio daqueles que ninguém se entende.
Estava a olhar para a confusão em que estava o gabinete quando, finalmente, o motorista chegou. Era um homem dos seus 40 anos, seco e eficaz. Tinha o vício dos copos, absolutamente incompatível com as funções que exercia e, para além disso, tinha vários ofícios com que procurava colmatar as dificuldades da vida e sustentar uma família numerosa. Falávamos pouco mas eu sentia que ele não gostava de mim. Porém, naquela manhã, ele decidiu ser explícito quando lhe pedi para fazer algumas entregas. Olhou-me directo nos olhos e disse-me de forma clara e desafiadora: - Desculpe que lhe diga mas não gosto de si. Acho-a uma pessoa fria, vaidosa e autoritária. Bem, e até lhe digo mais: também não gosto de ser mandado por uma mulher. Depois de refrear uma resposta que poderia sair arrevesada, limitei-me a perguntar: - O seu partido não defende a igualdade entre homens e mulheres? - Defende, mas são outras mulheres diferentes da doutora. São mulheres que lavam a roupa, fazem comida e criam os filhos. Mulheres que arregaçam as mangas, entende? Não respondi e logo ele acatou as minhas indicações sobre as voltas que tinha que dar pelas diferentes sucursais. Mas fiquei triste quando ele saiu. Aquelas palavras doeram-me de sobremaneira. Porque eu tinha a consciência que iniciara uma segunda etapa de vida em que regredira como ser humano. "Guerreiro", o motorista, não tinha sido o único a criticar-me. As emoções ainda estavam frescas quando, passados uns três dias, "Guerreiro" apareceu perdido de bêbado. Ele era useiro e vezeiro no vício dos copos mas, naquele dia, o homem estava mesmo de todo. Se fosse apanhado pelo controlo da alcoolémia teria uma valente punição e podia até ser despedido. Mal pensei e eis que do Grupo 8 me telefonam a perguntar se podiam mandar subir a equipa de controlo de alcoolemia. Não havia como sair do edifício sem passar pela portaria e, por isso, num acto de completa impulsividade, dei ordem à equipa de alcoolemia para regressar sem fazer os testes. Esta atitude, e por se tratar de uma empresa onde se colocavam questões de segurança, deu brado em tudo o que era sítio. Duas horas depois não se falava noutra coisa. E as opiniões dividiam-se: havia os que achavam que eu tinha tido grande coragem e generosidade, outros achavam que eu era uma irresponsável sem perfil para aquele cargo, e outros iam ainda mais longe dizendo que nunca deviam ser nomeadas mulheres para certas funções.
Por sorte o instrutor do inquérito era amigo e o castigo limitou-se a uma repreensão escrita que apenas me prejudicou na avaliação de desempenho imediata. "Guerreiro" esse mudou por completo. Daí em diante passou a ser a minha sombra e a consagrar-me uma devoção comovente. E embora lá fosse bebendo o seu copito nunca mais deu aso a uma situação como aquela. *************************************************************
Passados seis anos eu estava de partida. Tinha-me despedido de toda a gente, alguns com quem convivi mais de duas décadas, e o gabinete estava vazio. Uma coisa me preocupava na hora de partir. Era a situação do Guerreiro. As empresas são autênticas arenas onde as pessoas se degladiam. Um mundo que me desumanizou e do qual não sinto saudades. Porém todos aqueles que não conseguiram dobrar-me iriam ter no "Guerreiro"um alvo fácil. Além de beber uns copitos era comunista e sindicalista ferrenho. Tudo isso o tornava extremamente vulnerável.
Pensava nisto enquanto me ocorria que não me despedira de um grande amigo por não ter conseguido encontrá-lo. Claro que lhe podia telefonar e encontrarmo-nos noutra altura mas, naquele momento, tinha pena que ele não estivesse ali. Pego no resto dos pertences e eis que o meu amigo "AF" abre a porta do gabinete. Vinha esbaforido mas respira fundo quando me vê.
- Ainda bem que ainda consegui apanhar-te! Sabes é que eu pensei que tinha que te arranjar uma prenda mas tinha que ser uma coisa que tu gostasses mesmo. Sei que não gostas de flores nem essas coisas que normalmente as mulheres gostam e, por isso, decidi dar-te isto.
E estende-me um papel que olho perplexa enquanto ele acrescenta:
-Passei todo o dia na Administração e na Direcção de Pessoal para conseguir transferir o "Guerreiro" para o meu departamento. Não queria que te fosses embora com essa preocupação!
E os olhos turvaram-se-me quando o abracei.

sábado, 20 de outubro de 2007

UMA SOGRA ESPECIAL

Quando nos casamos não sabemos exactamente com o que é que nos casamos. Só quando nos divorciamos é que nos apercebemos com quantos elementos estávamos casados. Foi o que me aconteceu quando, após 17 anos de casamento, decidi separar-me. Não pude nem quis esconder ao meu marido que amava outro homem. A separação foi muito mais dolorosa do que alguma vez tinha imaginado. Foi um cortar sem fim de laços e afectos cimentados ao longo de toda uma vida. Foi como se eu me despisse de tudo e deixasse de ser eu para voltar a amar. Entre tudo o que tinha que largar, a minha sogra era o que mais me doía. Sim porque eu amava profundamente aquela barranquenha rústica que passou fome e trabalhou de sol a sol e que, aparentemente, nada tinha a ver com comigo. Eu vim de um mundo diferente mais sofisticado e frio, onde pessoas como ela não tinham lugar. Quando me casei ela não estava presente e, quando chegou a hora do filho me levar a conhecer a família, Ti Rosa (nome fictício) deixou de ter sossego. Como é que naquela casa ela ia receber uma pessoa tão diferente dela? Uma casa onde o marido fazia passar o burro por dentro para o pôr no quintal? Ti Rosa perguntava ao marido e às duas filhas o que é que devia fazer e dizer quando me visse. Mas todos os discursos preparados foram desnecessários, como inútil foi tanto nervosismo. A aceitação foi mútua e eu senti que tinha ali uma família rica de afectos. Passado pouco tempo, e com grande pasmo da gente da terra, a nora da Ti Rosa até andava de burro e ia à azeitona em férias ou fins de semana. Aos poucos todos se foram habituando a mim e a ter para comigo manifestações de amizade.
Com o divórcio nunca mais lá voltei. Pouco tempo depois o meu ex-sogro teve uma trombose que o levou à sepultura em menos de um ano. Contou-me o meu "ex" que o pai perguntava sempre por mim mesmo quando já não reconhecia ninguém. Não me senti com coragem para ir ao funeral. Mandei um telegrama embora admitindo sempre que o mesmo não seria bem aceite. Passados 3 meses atendi um telefonema da minha ex-sogra a agradecer o telegrama e a pedir-me desculpa de não me ter ligado mais cedo. E depois disse mais ou menos isto: " Quero que saiba que gosto muito de si e que nada do que se passou irá alterar isso. Pus umas flores na campa do meu marido em seu nome e todos os dias rezo à Nossa Senhora para que olhe por si e para que encontre tudo o que procura". Mulher extraordinária, como era capaz de me dizer isto depois de tudo o que os fiz sofrer? E, embora sinta que não mereço tamanha generosidade, sinto uma enorme gratidão e uma alegria interior reconfortantes.
A partir de então voltámos a ver-nos regularmente. Hoje Ti Rosa, já quase com 90 anos, vive num lar da margem sul. Visito-a de vez em quando e nunca falho o seu aniversário e as festas de Natal. Há amizades que são redentoras e há afectos que nunca se apagam. E há também pessoas extraordinárias. Pessoas que sem nunca terem ido à escola aprenderam a ler e a escrever e, sobretudo, a amar.

sábado, 13 de outubro de 2007

UM LENTO CAMINHO PARA A MORTE

Ela estava junto à banca dos jornais quando sentiu um leve toque no braço. Voltou-se e deparou com um amigo de longa data. Havia pouco mais de um ano que não o via porém, ao encará-lo, com dificuldade conseguiu disfarçar o choque. O efeito era devastador.
-Estás boa?
-Estou, e tu?
-Eu não. Tenho um cancro.
-Ela continuou a disfarçar e, o mais naturalmente que pôde, perguntou?
-E onde é que tens isso?
-No estômago.
-Estás a fazer quimioterapia?
- Ainda não. Tenho que ser operado primeiro. É para sofrer menos no fim. Já está muito avançado. Dentro de um ano já cá não estarei.
De regresso a casa ela ia pensando como a vida era imprevisível e absurda. Aquele homem teve tudo o que um ser humano ambiciona ter. Carreira, sucesso, dinheiro, mulheres que o amaram. Era lindo de morrer. Mas, curiosamente, ela nunca o amou nem se sentiu alguma vez atraída. Gostava daquela amizade calma que os levava a conversar e rir sem nunca ir mais além. E foi isso que perdurou através dos tempos fazendo com que se encontrassem sem ressentimentos. Agora estava cheia de pena dele, não daquela compaixão que humilha mas de uma pena sofrida. Apesar das muitas mulheres que tivera ele estava sozinho e ela não queria nem imaginar como ele se sentiria.
No dia a seguir telefonou-lhe e foram passear. Ambos procuravam que o encontro fosse o mais natural possível e ela hesitava frequentemente em oferecer-se para conduzir ou em perguntar se ele estava cansado. Mas afinal os muitos anos de amizade foram mais fortes e os dois conseguiram falar, e até rir, evitando tacitamente abordar aquele mal sem remédio. Numa esplanada junto ao mar ele até tinha um ar bonito e descontraído e até conseguiu brincar com aquele encontro. Disse que ela o fazia sentir-se tão bem que ele até esquecia, por momentos, que estava tão doente. Falava como se até fosse um bem estar doente só para estar com ela e ela ria e gozava o exagero.
Mas foi naquele dia. Porque cada fracção de tempo tinha um peso diferente nos acontecimentos e nas emoções. Cada 24 horas representava para ele uma aproximação inexorável do fim com uma perda de capacidades galopante. Em cada semana ele dava menos um passo, subia menos um degrau, conseguia estar sentado menos uma hora. Mas não era só o físico que se ressentia. O homem orgulhoso, delicado, que não queria incomodar, foi dando lugar a um outro que ela desconhecia. Agora era ele que pedia, e quase exigia, que ela o acompanhasse e a sua linguagem tornou-se ácida e cortante. Chegou a dizer-lhe que via muitas mulheres como ela no IPO quase passando a mensagem que gostaria de a arrastar consigo neste percurso sem remédio. Tornou-se absurdamente possessivo como um amante ciumento e tirava-lhe das mãos o telemóvel sempre que este tocava. Quando ela não estava com ele, ele queria saber onde estivera e com quem estivera e o que fizera. Esquecia-se que, na qualidade do relacionamento, não fazia qualquer sentido. E a cada dia que passava ela sentia-se emocionalmente mais exausta. Escrevia horas a fio na Internet, falava sem saber bem o que dizia e, por vezes, sentindo-se meio ebria e meio sem jeito.
E o pior ainda está para vir. O fim aproxima-se a passos largos e os meses próximos adivinham-se terríveis. Ela irá assistir a uma degradação psicológica e física de uma crueza jamais imaginada e, curiosamente, ele que lhe dizia que não gostava que ela o visse sofrer, já não se importa.
Ela fecha os olhos e vê a noite tão longa como nunca a imaginaria. Ela própria perdeu peso e tem um ar mais cansado. Precisava viajar, ir de terra em terra como tanto gosta. Agora tinha tempo para isso. Porém ela sabe que não se pode afastar dele durante muito tempo e levá-lo para onde quer que seja é impensável. E sabe também que, por um motivo qualquer que não consegue explicar a si própria, nunca o irá abandonar.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Larga a tua cabana e vem,
vem ver o palácio do senhor
o fruto do teu suor.
***
Larga a tua servidão e vem
vem ver o rico esbanjar
a tua dor.
***
Larga essa prisão e vem
vem ver o soldado morrer
sem valor.
***
Larga o teu medo e vem
ámanhã hás-de ser
de ti senhor.

domingo, 7 de outubro de 2007

REDENÇÃO

Segurou a esferográfica com toda a força e a tal ponto que, se a mesma não fosse de metal resistente, teria acabado por se partir. No trabalho tinham-lhe ordenado que fizesse parte de um júri de selecção que incluiria e excluiria concorrentes segundo critérios, pouco transparentes, de conveniência. Ela sempre se orgulhara do seu perfil de mulher recta, a procurar as soluções mais justas, e aquela imposição era como uma faca que lhe apontavam ao peito.
Se recusasse era o fim da sua carreira e tinha um filho para criar. Talvez significasse também perder o homem que amava. E ela por estes dois era capaz de tudo. A luta interior era muito forte, os dedos apertaram com mais força ainda a esferográfica e ela pôs a sua assinatura.
Um vento frio passou-lhe por cima e acompanhou-a durante vários anos. Anos em que se inscreveu num partido, que nada lhe dizia, porque o companheiro foi servindo de mediador entre ela e um outro lado das coisas. E assim foi singrando na carreira, criando o filho e afastando-se de si própria.
Mas um dia decidiu partir a caneta antes de voltar a pôr outra assinatura. Há sempre um dia e há sempre uma gota de água. Talvez não fosse mais importante aquela que foi mas foi aquela.
Saiu para a rua e andou várias horas meditando. No dia seguinte foi ao partido e entregou o cartão, foi à empresa e negociou a saída e, finalmente, disse adeus ao homem que amava. Foi de tudo o mais difícil mas ela preferiu levar o resto da vida a procurá-lo, dentro de si própria, que continuar a existir na servidão.
O céu ficou mais límpido e, só então, se apercebeu que ainda havia estrelas mesmo que as lágrimas lhe caíssem e estivesse sozinha.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O SOL HÁ-DE NASCER

Um dia a fome há-de morrer
e a luz há-de brilhar no teu olhar.
Não terás que morrer para viver
nem terás que viver p´ra soçobrar.
***
Um dia o sol há-de nascer
e eu estarei lá para te encontrar.
Quero assistir às forças que do vento
mandarão os campos libertar.
***
Então, meu irmão, terás a minha mão
e juntos poderemos caminhar.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

NÃO TEM QUE SER TÃO GRANDE O MUNDO

Não tem que ser tão grande o mundo
nem tão vastos os mares e largo o pensamento.
Não tem que ser tão grande o mundo em que afundo
meus passos sem regresso pelo tempo.
***
Não tem que ser tão grande o mundo p´ra te procurar
nem tão fundas as raízes e o tormento.
Não tem que ser tão grande o mundo para um sentimento
nem tão curta a distância p´ra chorar.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

PROCURO UM MUNDO

Procuro um mundo
sem princípio nem fim,
sem ruídos nem desertos,
um mundo onde os jardins
tenham flores silvestres.
***
Procuro um mundo
onde se possa correr
sem tropeçar
e onde se respire
e possa amar
***
Nas minhas mãos pequenas,
com pouco para dar,
eu hei-de sempre achar
nem que seja uma pedra
para edificar e partilhar
e, assim, correr, viver
e me encontrar.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

PARA ALÉM DE MIM

Não quero que a cada passo que dou além de mim,
a minha voz não passe de um sussuro sem alento.
***
Porque ainda que eu corra contra o vento
não aceito acabar dentro de mim.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

O BALÃO E A ILUSÃO

Comprei-te dois balões naquele dia,
um era azul, o outro era encarnado
e neles pus a minha fantasia
e a esperança de te ver encantado.
***
Era um dia igual a outro dia,
para mim sem qualquer novidade,
derretendo apenas a melancolia
nos balões azul e encarnado.
***
Dei-tos mas tu não os quiseste,
prendi-os com um cordel ao teu carrinho
e tu sacudiste-os e aborreceste.
***
Tinhas então dez meses meu filhinho
não podias ainda entender
a ilusão de um simples balãozinho.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

LIBERTAÇÃO

Vou partir, para algures, aonde a chuva não cai.
Vou enterrar o amor que tive a não sei quem.
Hei-de sentir o peito arfar na correria
e hei-de voltar a ser quem fui
e a ir além.

sábado, 22 de setembro de 2007

O PRIMEIRO DIA DA MENDIGA

Dedico este poema a uma senhora que conheci rica e que, exactamente há dois dias, se me dirigiu, na rua, para me pedir dinheiro para aviar uma receita médica. Disse-me que tinha a casa à venda e que estava numa situação tão desesperada que decidiu estender a mão à caridade. Enquanto me contava as lágrimas não paravam de cair.
A esmola é muito pouco para uma situação destas. Deixo-lhe este poema para que outros o leiam e se questionem sobre o que está a acontecer neste Portugal profundo.

***

Passou por mim, pela primeira vez mendiga,

ela que outrora ordenava e foi rainha.

Passou por mim, e estava tão sozinha,

nos hábitos que acusavam a fadiga.

***

Por umas moedas, de lágrimas consumida,

ela estende a mão pela primeira vez na vida

e também eu, pela primeira vez, ao dar esmola

me senti igual a ela tão mendiga.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

UM MUNDO ALGURES

Dói-me a solidão em que respiro
nestas horas mordidas uma a uma.
Órfã de ti com o silêncio busco
na areia, nos saibros e na bruma.
***
Loucura? Ilusão? Ou coisa nenhuma...
Um mundo que outro tempo, algures,
segurei inteiro em minha mão.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

É TEU IRMÃO

É teu irmão, pela condição,
esse que morre de fome
enquanto tu fazes dieta
para emagrecer.
***
É teu irmão
na contradição
dessa duas diferentes formas
de morrer.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

AO MENINO MENDIGO

Quando te encontro nestas ruas usadas
com essas mãos que já não são tuas
estendidas para outras mãos deterioradas
que sujam de moedas
a beleza das luas,
eu acho que nunca ninguém disse o que bastasse.
Não, nunca ninguém disse o que bastasse
nunca ninguém deu o que servisse
nunca ninguém lutou que saciasse
a sede de uma justiça que cumprisse.
Nunca ninguém amou que resistisse!...

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

PEDRA DE RAÍZES

No jardim de ninguém a erva cresce.
Não há foices, nem fomes, nem fadigas
nem esperança que renasça.
Era a paz que eu queria
e fujo.
Não me encontro
nem há
quem me procure.
Meu amor, meu mundo, meu silêncio
essa pedra de raízes
me tornaste.

sábado, 8 de setembro de 2007

A MAIS

Hoje andei perdida pelas ruas

cansada de ser viva e querer viver

e nesta dimensão enorme do meu ser

era apenas, a mais,

outra pessoa.

LIMITE

A noite é o algoz do poeta enganado
nessa vital razão de ser poeta.
A noite é tempo e tempo é linha recta
num espaço de curvas tracejado.
-
A noite é o descanso condenado
pela vigília e pelo raiar da aurora
que traz à mente de quem ri ou chora
um campo de lutas limitado.
-
A noite sou eu dos dias já cansada
a pensar que outra é a madrugada
deste escuro que arrasto e me tortura.
-
A noite é a verdade sem remédio
em que bebo lentamente a desventura
desta revolta a diluir-se em tédio.

LIBERTA-TE AMIGO

Liberta-te, amigo, parte esses grilhões
e vai cantando pelas madrugadas.
Rasga os dogmas, rasga as convenções
o céu não tem limites, o sonho não corrompe.
Dizem que és louco? Sorri
não te deixes levar por compaixões
os que te lamentam são aqueles
que mais cedo te esquecem..
Não permitas que as pedras te anoiteçam
entre a manhã e a noite existe a tarde
e a tarde, amigo, só pertence ao tempo.
Os que te acusam são os mesmos
que invejam a tua liberdade.
Sê quem és sem nada destruires
as cidades são o mundo dos homens
o paraíso o refúgio dos loucos.
Vive e deixa viver
tempo perdido não regressa.
Podes dar vida aos outros mas não tempo
por isso, amigo, os dias se sucedem.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

MENSAGEM DO CUCO

Não há nada de nobre em sermos superiores ao próximo. A verdadeira nobreza consiste em sermos superiores ao que éramos antes.
(Autor desconhecido)

UM DIA DIFERENTE

É este dia vazio, sem nada, em que quis escrever e não fui capaz.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

SÓ NAQUELE INSTANTE

Ambos sabiam que não voltariam a ver-se. No aeroporto de Frankfurt ele segurava-lhe a bagagem, na fila de despacho, com uma solicitude comovente. E indagava sobre pequenos pormenores que demonstravam uma preocupação acrescida. Chegou mesmo a lembrar-lhe que fizera mal em pôr na bagagem um pullôver de malha que talvez lhe fizésse falta na chegada a Lisboa que seria já noite.
Nenhum mencionava o momento, ou os momentos, que viriam a seguir. Quando fez o check-in, depois de um beijo e um abraço muito apertado, esperou em vão que ele se afastasse. Porém ele continuava colado ao vidro do portão por onde ela passara. E ela amou-o profundamente naquele instante. De uma forma total e avassaladora como não tinha memória. E ele esperava o sinal que não veio. Porque ela sabia também que aquele amor profundo e absoluto era apenas obra daquele instante. E só daquele instante. Quando o avião descolou ainda procurou, nos pontos pequeninos, algo que o indentificasse. E sentiu um vazio enorme ao não descobrir o que quer que fosse. Porém, quando quatro horas e meia mais tarde era anunciada a aterragem em Lisboa e ela pôde avistar, entre as luzes da noite, o Tejo e a ponte Vasco da Gama, sentiu-se completamente em casa. Mas sentiu também que , naqueles breves dois meses em que estivera fora, se tinham passado vários anos.

NÃO ME BATA!

O dia tinha amanhecido cinzento com uma neblina cerrada que molhava as ruas e as deixava lamacentas e pegajosas. Igual ao dia era o meu estado de espírito naquela manhã. Acordei mal-disposta e não atinava com nada do que fazia. Para ajuda o carro não pegou e o comboio vinha atrasado. E logo naquele dia em que tinha que preparar uma série de relatórios e tinha uma das empregadas doente!...
Foi então que o vi pela primeira vez. Chamava-se Mussaggi e teria, talvez, uns cinco anos. Os seus cabelos eram pura carapinha e tinha uns lindos olhos pretos magoados. Quando o vi estatelar-se no chão molhado corri para o levantar e foi então que reparei que ele estava sozinho. Fugindo, evidentemente. Olhou para mim com olhos suplicantes e disse aflito: "não me bata!" Recebi esta frase como um soco e olhei-o com mágoa. Estava tão habituado a ser maltratado que não admitia um gesto diferente. Vi-lhe o joelho a sangrar e o coração apertou-se-me ainda mais.
Levei-o comigo até um café onde tomámos tranquilamente o pequeno almoço. As minhas preocupações de início de dia ficaram para trás e durante uns bons momentos conversámos e rimos como bons amigos.

PÁSSARO DO DESERTO

Pássaro do deserto, como hoje é tarde
e é cedo também nos dias sem tempo.
Pássaro do deserto, como estou sozinha
cansada e viva, rodeada de gente.
Pássaro do deserto, tão perto não viste
meus olhos sorrindo cheios de tormento.
E assim desfolhámos as rosas
demos de comer ao vento.
Pássaro do deserto voando...inutilmente.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

A LIÇÃO DO SEM-ABRIGO

Encontrei-o numa manhã, dessas manhãs em que andamos apressados e indiferentes a tudo o que nos rodeia. Acordamos cansados e, mecanicamente, vamos cumprindo todos os rituais que nos levam de casa ao trabalho. Era um dia cinzento e baço e eu tinha pressa, muita pressa, porque já estava atrasada. Na praça da Figueira o homem pediu-me uma esmola que eu neguei, por comodismo, para não ter que procurar a carteira na mala. O homem seguiu-me até ao café da esquina onde fui tomar a "bica" indispensável ao meu início de dia. E olhava para mim com ar insistente. Não dizia nada. Só olhava. Com um leve arripio de desconfiança cheguei mais a mim a mala de tiracolo. Este meu gesto não passou despercebido ao sem-abrigo que murmurou:"Escusa de segurar a mala. Pedi-lhe uma esmola mas não sou um ladrão".
Caí em mim e aprendi a lição. Passaram-se muitos anos mas não a esqueci.

CÁLICE

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta.
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da puta
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta.
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado.
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado, eu permaneço atento
Na arquibancada p´ra qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa.
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo.
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade.
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um facto consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno.
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça.
Gilberto Gil-Chico Buarque

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

O ELOGIO FÁCIL

O elogio na presença
a meu ver diz pouco ou nada
pode até ser uma ofensa
p´ra pessoa elogiada
António Aleixo