terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

DOIS ANOS DEPOIS

Há dois anos que decidi encerrar este blogue. Porém, nunca fui capaz de o destruir. Era como se destruísse o registo de mim mesma. Mas será que vale a pena identificar esta parte de mim? No mundo duma Lídia mais racional talvez estes textos não façam muito sentido tanto mais agora que vou percorrendo o caminho solitário até ao fim.

Ontem fez dois anos que o Tó morreu. Foram 730 dias em que confrontei o vazio sem o encontrar. Em que tinha tanta coisa para lhe dizer e que reservei só para mim.
É o Alex que já está novamente comigo depois da mãe ter voltado a tentar mais uma vez o suicídio, de lhe roubar dinheiro do que eu lhe dava e de se endividar para lhe comprar o que não podia. O Alex voltou feito num caco e desta vez para não regressar. A esperança é a última coisa a morrer mas também morre. E a Xana não tem concerto.
É a luta que travo todos os dias para deixar mais ou menos arrumadas as minhas responsabilidades para com os outros para, quando partir, não se sentirem perdidos à procura de soluções que eu sempre encontrava.
É a tua ausência, amigo, que me faz sentir uma nostalgia imensa tão grande que fico forte ao pensar que nada temo depois deste vazio. E curiosamente não penso no Joaquim. Não sei se encontrou alguém ou está sozinho. Não sei se foram seus os êxitos profissionais ou os fracassos. Nem sequer sei se está vivo. E queres saber Tó? Eu não sei nada dele porque não procuro saber. É como um vento que soprou e que eu jamais conseguiria agarrar.
Mas de ti, Tó, tenho uma saudade imensa. Uma saudade tão grande que nem a sei a mim mesma explicar. A Margarida (a tua Margarida) tem um novo companheiro. A tua ex-mulher também voltou a casar. Ambas diziam que não podiam viver sem ti mas puderam. Eu nunca te disse isso mas está a ser tão difícil!...
Faltas-me tu para me responderes a isto. Sempre soubeste responder-me a todas as perguntas...
Eu nunca te amei, Tó, e tu nunca quiseste que fossemos amantes. Por isso te amo tanto. Por nunca te ter amado...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

AS RAÍZES DE ALEX

Alex nasceu no dia 1 de Abril faz, no próximo, 15 anos. Filho duma parente que caiu no mundo da droga, ele viu pela primeira vez a luz do dia numa fase da minha vida algo conturbada. Depois do divórcio, e duma nova paixão, juntaram-se-me outras solicitações impostas pela nova vida.
Confesso, também, que já estava cansada de socorrer a infeliz criatura mãe dele que me inspirava sentimentos que iam da compaixão à revolta e mesmo de alguma falta de paciência.
Várias vezes acorri em situações extremas para a ir resgatar à polícia. Ou ao hospital, após várias tentativas de suicídio. Mas, sinceramente, achava que tinha chegado ao meu limite. Por isso, e por mais que insistissem comigo para ir ver o Alex, decidi que não ia e pus um ponto final no assunto. O Alex viveu, até aos 4 anos, entre a segurança social e os pais drogados.
É nesta fase que a mãe tenta, mais uma vez, o suicídio atirando-se com o carro duma falésia donde, aparentemente, seria impossível sobreviver. Mas os milagres acontecem e, embora esfacelada, a Xana não morreu. Porém, quando o helicóptero a resgata, ela pede que me contactem para que eu lhe olhe pelo filho.
Foi então que vi o Alex pela primeira vez. Era magrito mas tinha um ar adulto e compenetrado. Olha para mim, como a pedir-me desculpa de estar vivo, e eu sinto o coração apertar-se-me. Convido-o a ir ao Parque das Nações e procuro distraí-lo. Alex segura-me a mão, olha tudo com olhos gulosos, mas nada pede. Nunca está cansado, nunca tem fome, nunca tem sede, não precisa ir ao WC. A sua mão aperta a minha com mais força e pergunta constantemente: eu não te aborreço? não estás cansada de mim?
Porém aos poucos, e depois deste passeio, Alex começa a sentir-se seguro. Já não se contenta com 2 voltas do carrocel e insiste sempre noutra e mais noutra. Era altura de começar a pôr regras para não passarmos do 8 ao 80. Cada vez que saíamos eram duas voltas de carrocel e outros mimos, mas tudo com conta peso e medida. Tal como sempre fiz com o meu filho.
Quando me separei do Joaquim, Alex veio viver comigo definitivamente. A mãe fora mais uma vez internada e eu e ele começámos uma vida nova. Sempre bem disposto e acatando tudo o que lhe dizia, depressa se revelou um excelente estudante, um óptimo companheiro e uma criança aparentemente feliz e bem integrada.
Tudo o que eu lhe dissesse era sagrado. A confiança em mim era ilimitada. Por sua vez ele deu-me um sentido à vida como nunca teria imaginado. Rejuvenesci a brincar e a estudar com ele e a interessar-me por aquele mundo juvenil rico e matizado.
Falávamos sobre o pai e a mãe de forma natural procurando eu sempre explicar-lhe que eles o amavam só que tinham enveredado por uma vida em que não era possível tê-lo com eles.
Alex ouvia e ficava pensativo. E quando se lhe perguntava o que queria ser um dia mais tarde, ele respondia que queria ter uma profissão em que ganhasse muito dinheiro porque precisava ajudar a mãe.
Também no dia da mãe Alex fazia, ou comprava, duas pequenas lembranças: uma para mim e outra para a mãe. A da mãe ficava sempre no quarto dele até uma oportunidade. E o Alex sentia que a mãe não estava perdida porque ele tinha uma prenda para ela.
Quando o Alex fazia anos, ou pelo Natal, eu pedia-lhe que fizesse uma lista do que pretendia e dos respectivos preços. Feita a soma dava-lhe um cartão carregado com um pouco menos dinheiro que a soma da totalidade dos bens pretendidos. Pretendia com isso obrigá-lo a fazer contas e opções. E Alex fazia. Escrupulosamente. Uma vez, baixando a qualidade de alguns dos bens a adquirir, conseguiu comprar tudo e ainda me devolveu algum dinheiro.
Num Natal, há cerca de 3 anos, depois de eu carregar o cartão como era costume, Alex, com o olhar baixo e a voz sumida, pergunta se não poderia ficar com o dinheiro que não gastasse. Explicou-me que até preferia não comprar nada e ficar com o dinheiro todo para dar à mãe que estava a dormir no Casal Ventoso. Expliquei-lhe que não adiantaria dar dinheiro à mãe mas que poderia ajudá-la convencendo-a a tratar-se.
Xana olha para mim como quem olha para um mundo vazio e desconhecido. Insisto em arrancá-la dali mas ela faz-me ver que não há mundo lá fora nem amanhã para ela. Que perdeu tudo, que não tem nada por que lutar.
- Tens o teu filho - argumento sem forças.
- Mas o meu filho já não é meu, é teu, responde em prantos. E eu quero que continue a ser teu porque está melhor contigo do que comigo.
Então eu conto-lhe como o Alex a tem acompanhado e como espera poder ajudá-la um dia. E uma luz começa a brilhar-lhe nos olhos cansados.
Alex e Xana estão juntos há dois anos. Eu acompanho o relacionamento dos dois e orgulho-me de vê-la trabalhar na indústria hoteleira até à exaustão, para dar ao Alex tudo o que pode com o dinheiro dela. Recordo-me que, quando comprou o primeiro presente ao Alex, de me ter dito que teve vontade de dizer na rua, a cada transeunte que passava:
- vêem aquele garoto? É meu filho e aquele fato de treino que ele leva fui eu que o comprei.
Contudo devo confessar que sinto uma saudade enorme de ter o Alex comigo. Olho o quarto dele, que se mantém intacto, e sinto o seu vazio. Alex sabe que aquele quarto está sempre pronto a recebê-lo mas nunca me falou nisso e ainda bem. Recebi hoje uma carta do Tribunal de Menores para a audiência marcada para 13 de Março.
É quase Primavera e logo estará a chegar novamente o dia 1 de Abril em que terei que carregar o cartão do Alex.
A vida continua.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O SENTIDO DA VIDA

Todos nós procuramos o sentido da vida porque, só com esse sentido, a vida não é morte. Eu acreditava ter encontrado o meu numa vida tranquila e sem grandes sobressaltos. Uma vida que não correspondia ao meu espírito inquieto mas que, nem por isso, deixava de ser vida. Porque mesmo na tranquilidade dos dias eu buscava o turbilhão das coisas e espraiava-me na imaginação, no trabalho, nos livros e nos desafios pequeninos.
Tudo parecia ir bem se o destino não conjurasse pregar-me uma partida. Porque só podia ser uma partida do destino que fez com que o meu administrador adoecesse e não pudesse ir a uma reunião inadiável com o secretário de estado. E, por coincidência, o meu director também não pôde substituí-lo porque tinha um compromisso inadiável. E também, por coincidência, tive que ir eu, única que restava conhecedora dos dossiers. E da soma destas coincidências resultou que encontrasse o homem da minha vida. Se alguém me preconizasse tal acontecimento teria rido a bandeiras despregadas. Com quase 40 anos apaixonar-me à primeira vista parecia coisa de loucos. Mas foi o que aconteceu. E o pior que tudo é que foi recíproco. Por mais que quiséssemos travar os acontecimentos eles sobrepunham-se a tudo, inclusive à nossa vontade, se é que ela existia.
Desde o nosso primeiro encontro de trabalho que o Joaquim não parava de me telefonar, de me convidar para um café ou para almoçar. E fazia-o à luz do dia, com todo o avontade, em frente de toda a gente. Eu vivia nos ares mas, o que restava da minha lucidez, aconselhava-me a que devia pôr um travão nos acontecimentos. Era casada, tinha um filho crescido, tinha uma vida sem grandes sobressaltos e sem grandes emoções. Romper com tudo não deixava de ser assustador, mesmo para uma pessoa como eu.
Mas o destino não me deixou parar. Esse destino, em que eu nunca acreditei.
O Joaquim tinha um congresso na Suíça e, enquanto no self service eu aguardava o pagamento na caixa, ia meditando no que devia dizer-lhe quando regressasse. Depois de muito matutar, conclui que o melhor seria mesmo ir directa ao assunto e dizer-lhe que era melhor não nos encontrarmos a não ser por questões de trabalho. E, enquanto assim pensava, senti que alguém me tirava das mãos o tabuleiro do almoço depois de eu o ter pago. Voltei-me surpreendida ao deparar com o Joaquim:
- Não devias estar na Suíça? pergunto.
- Perdi o avião, responde. - Reservei uma mesa para nós no restaurante ao lado, acrescenta.
- Não posso acreditar! E que faço eu ao meu almoço que já paguei?
- Ofereces a alguém que ainda não tenha pago.
E, com o maior desplante, ofereceu o tabuleiro a alguém da fila e segura-me no braço em direcção à porta.
Sentados, num canto tranquilo do outro restaurante, interpelo-o:
- Tu não perdeste avião nenhum. Não quiseste apanhar o avião para vires ter comigo.
O ar fica tenso e ele não nega.
- Não podemos continuar com este comportamento de adolescentes. O que estamos a fazer é uma autêntica loucura.
- Porquê?
- Porque somos ambos casados, temos as nossas vidas. Poderás não ter um bom casamento, eu também não tenho mas nunca fui infiel.
Ele olha-me intensamente e a voz sai lenta e arrastada.
- Casei, ainda novo, mas o casamento até correu bem. Nunca tive uma aventura. Mas isto é diferente e também não é uma aventura.
Os olhos enchem-se de lágrimas quando acrescenta:
- Pede-me tudo o que quiseres e eu faço. Mas não me peças que não te procure porque.... eu não consigo!
Era curta a distância para os seus braços e também curta a distância das palavras que se seguiram:
- Eu também não!
E foi assim que rompemos com vidas já cristalizadas, que enfrentámos mares e tempestades, que nos divorciámos que nos amámos e que passamos a viver juntos.
O amor faz milagres de aproximação mesmo quando as distâncias parecem intransponíveis. E, por vezes, torna igual aquilo que é diferente num exercício enganador para se sustentar.
Às vezes ao olhar o Joaquim quando andávamos à beira-mar ou quando explorávamos campos e matagais e o via feliz e descontraído, quase achava que ele era como eu. Outras vezes era eu que era como ele quando ficava com o mesmo ar quando o acompanhava nos eventos sociais.
Porém essa similitude era obra do acaso e do momento. Ele continuava a ser o homem ambicioso que queria ir mais além na política e nos futuros cargos. E eu continuava a ser a garota rebelde que, aos 10 anos, fugiu numa caravana de saltimbancos para correr mundo.
O mundo do Joaquim era o meu anti-mundo. Trazê-lo ao meu era também matá-lo. Sempre atento às minhas reacções a ele não passava despercebida a minha luta interior. E, também ele, ficava dividido e atormentado. Procurava oferecer-me prendas que sabia que eu gostava. E eu procurava ser o que ele queria que eu fosse sem exigir nada. Sim, porque eu sabia que não havia meios termos. Aquilo que nos aproximou, essa capacidade imensa que nós tínhamos de jogar tudo por tudo e de não nos contentarmos com meias partes, também haveria de nos separar. E aquele que partiria seria aquele que mais abdicasse. E eu queria ser eu a partir.
Vivemos intensamente com a certeza que os momentos seriam talvez breves. Duraram 6 anos. Até eu ter coragem para partir e ele ter coragem para não chorar.
Cheguei à minha casa num dia de Primavera e reparei que, no meu pequeno jardim, desabrocharam uns malmequeres amarelos. Sentei-me no chão, junto às flores, e chorei. Foi então que o Alex, um pequeno vizinho de 7 anos, a quem eu dava apoio por os pais serem toxicodependentes, se chegou a mim e me olha surpreendido.
- O que te aconteceu? O teu marido fez-te mal?
- Já não tenho marido, respondi.
- Assim como o meu pai e a minha mãe?
- Mais ou menos assim, Alex.
Fica pensativo durante um momento e acrescenta:
- Eu podia ser teu namorado mas ainda sou um bocado pequeno.
- Oh Alex como é que eu nunca me lembrei disso? E abraço-o.
Sorrio e vejo uma nesga de céu por entre as nuvens.

sábado, 5 de janeiro de 2008

UM LENTO CAMINHAR PARA A MORTE(II)

Ao olhar para o , naquele momento, dificilmente se poderá acreditar que esteja tão doente. O cabelo conserva a mesma textura apenas um pouco mais grisalho, os lindíssimos olhos verdes continuam com a mesma expressão, o corpo alto e esguio continua flexível e, no entanto, ele está a morrer.
Olho para ele, nesta passagem do ano, com a certeza plena que, no próximo ano, já não o terei comigo. Ele capta-me o olhar e diz-me quase sorrindo:
- Tens um ar cansado.
- Queres dizer que estou velha e feia, é isso? Brinco eu.
- Sabes bem que não é isso, mas tens um ar cansado.
- Porque não te deitas aqui ao pé de mim?
Capta a minha hesitação e perplexidade e por isso acrescenta:
- Já não sou um perigo para ninguém.
- Para mim nunca foste um perigo, respondo.
Um sorriso franco e travesso consegue tomar-lhe conta do rosto.
- Fui sim, tu é que não deste por isso.
A enfermeira chega para lhe injectar o sedativo. Depois seguro-lhe a mão e aguardo que adormeça. Efectivamente estes paliativos têm feito autênticos milagres. Milagres aparentes mas que lhe restituíram a dignidade e a postura. Que importa que depois não haja vida ou que a vida se apresse quando se evita o sofrimento?
Ao vê-lo adormecido penso num passado em que ele esteve sempre presente na minha vida. Durante quase três décadas esta amizade aguentou todos os acontecimentos que empolgaram a vida de ambos em separado. Casamentos, divórcios, paixões e carreiras nada nos afastou e, sempre que nos encontrávamos, falávamos como se tivéssemos estado sempre juntos e como se soubéssemos sempre o que havíamos de falar. O costumava dizer-me que nunca conseguia falar com ninguém como comigo. Eu sentia, de certo modo a mesma coisa, mas aborrecia-me, por vezes, tê-lo sempre na minha peugada embora, ao mesmo tempo, isso fosse para mim reconfortante.
Recordo quando, na faculdade, estava às voltas com as matrizes e os determinantes e ele se ofereceu para me dar explicações. Recordo quando caminhámos juntos pelas ruas, num dia de chuva miudinha, em que não abrimos os chapéus e nos fomos sentar em cima dum muro junto ao mar. Ele pôs o braço sobre os meus ombros porque sabia que eu estava a sofrer. Ele sabia falar mesmo quando não falava e nunca dizia mais do que devia dizer.
Mas apesar de nunca ter transposto o muro duma amizade sem qualquer segundo sentido, o era conhecido como um grande garanhão nos meios em que frequentávamos. Tanto que havia muito quem não acreditasse que fossemos apenas amigos.
Mas se o meu ex-marido não simpatizava muito com a nossa amizade já o Joaquim, meu companheiro e paixão para sempre, ficava possesso quando via, ou sabia, que o me procurava. Todavia eu defendia esta amizade como algo de muito precioso de que não devia envergonhar-me e, com mais ou menos resmungos, o lá continuava a dar-se comigo e a ser aceite.
A minha amiga Margarida, que teve com o um romance tórrido e que tentou suicidar-se quando este lhe deu o fora, não percebia como é que eu podia não gostar dele doutra forma. Mas a verdade é que ele para mim não era irresístivel apesar de ser culto, inteligente, bem sucedido e o mais bonito dos homens que conheci.
O costumava dizer-me que era o facto de nunca termos ido mais além, no nosso relacionamento, que lhe dava a garantia que, em qualquer ponto das nossas vidas, nos encontraríamos sempre sem mágoas nem ressentimentos.
Porém, agora surgiam-me imagens do passado, a que outrora não dei grande importância, talvez por não me terem trazido as inquietações e os sobressaltos que fazem os sentimentos duplamente sentidos. E dei-me conta que, nos meus percursos de loucura e avidez de vida, de tropeções e de pequenas vitórias, o tinha sido sempre a minha certeza e a minha força, a minha coragem e a minha vontade. Alguém que esteve sempre presente e jamais me cobrou o que quer que fosse. Não consigo imaginar a sua perda sem sentir um vazio insuportável. Um vazio maior do que quando deixei o Joaquim, o homem da minha vida. Claro que havia razões para o deixar. Mas que razões haverá que me mantenham aqui à cabeceira dum homem que não fui capaz de amar mas que também não consigo suportar a ideia de perder?
Se voltasse atrás seria diferente? Não, não seria. Este era o meu porto de abrigo mas não a minha luz. Porém a minha vida sem ele parece esvaziar-se de todo o sentido.
Por que têm que ser tão difíceis as respostas que procuramos e por que a noite tem que ser tão escura?

sábado, 15 de dezembro de 2007

DEPOIS DO NADA

Silenciosamente perderam-se os passos
Raivosamente secaram-se os prantos
Convulsivamente calaram-se as vozes
E ficou deserta a terra desfolhada
***
Dizem que depois do nada
Só há morte

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

CLASSES E PRECONCEITOS

Não devia haver classe sociais. Aliás sempre achei que não havia. Não pertencemos todos ao género humano sem distinção de raças ou de credos? Por quê então considerar pessoas como sendo do outro lado? Como não fazendo parte da família humana? Era assim que eu pensava mesmo quando via grandes diferenças na forma como viviam certas pessoas. Tinha pena que fosse assim mas nunca subestimei essas pessoas.

Talvez esta visão fosse muito ingénua e eu demasiado bem intencionada. Porém a vida tratou de me fazer menos boa e de mostrar-me que afinal existiam classes. E não só existiam como as pessoas as sentiam e se sentiam de maneira diferente.

E foi o meu marido que me ensinou tudo isso. E ensinou-me de uma maneira crua que eu não estava preparada para aprender. Porque acreditava no companheirismo que me levou a casar num dia 7 de Junho de um ano qualquer. Numa cerimónia no registo que não demorou mais que 7 minutos. Não levámos convidados e até nos esquecemos de levar padrinhos. Tivemos que arranjar dois voluntários à pressa que serviram para mim e para ele. Eu vestia as minhas jeans surradas bem diferentes do vestido de noiva tradicional mas estava quase feliz. Estupidamente feliz por procurar caminhar em sintonia com um desconhecido que, por uma razão qualquer, se cruzou num dado momento no meu caminho. Um momento de fragilidade, diga-se em abono da verdade. E em momentos de fragilidade ama-se o amor mais do que a pessoa.

Porém quando comecei a olhar para a pessoa e a interrogar-me sobre ela descobri que tinha medo. Medo do homem que tinha estado na guerra. Medo do homem que vinha medalhado e com cruz de guerra por ter matado. Olhava-lhe para as mãos e pensava que tudo me era estranho que não havia refúgio dentro de mim própria.

Este ser que me amava, ou que dizia amar-me, tinha dentro de si todo um conjunto de sentimentos tumultuosos. E eu estava no centro desse tumulto. Da paixão doentia que lhe despertava. Da sua submissão extrema e seus desvelos exagerados, do seu ódio profundo e do seu incomensurável sentido de revolta.

Se a aceitação entre mim e a família dele foi aberta e natural entre ele e a minha tudo foi diferente. Ele ia de pé atrás contra a família "burguesa," inimiga das pessoas como ele, e responsável de todos os males que lhe tinham sucedido. Ele defendia, com ódio, a desigualdade em que os ricos apareciam como verdeiros cafajestes que despojavam os pobres dos bens e da alma em proveito das suas futilidades. Era como se os meus pais e eu tivessemos a culpa que ele tivesse ido aos catorze anos para a escola e se formasse em economia e não em medicina como teria desejado.

Os ataques sistemáticos à minha família, a forma como gozava a minha mãe, tudo me doía sobremaneira, porque, mal ou bem, aquelas eram as minhas raízes por muitas e longas que fossem as paragens em sítios distantes.

E um sentimento, que antes não existia em mim, começou a criar forma. É que também agora eu odiava tudo aquilo que ele representava, os ideais que defendia e as coisas que gostava.

A minha capacidade de amar e compreender esgotava-se de dia para dia perante tanta intransigência. A minha sogra chamava-lhe a atenção mas ele não queria saber.

O que parecia vir a ser um relacionamento tranquilo passou a deslizar entre dois extremos: o de uma dedicação absoluta e de uma raiva latente pronta a explodir ao menor passo em falso.

E nada o fazia mudar. Nem mesmo o nascimento do filho. Apesar de excelente pai, colaborante nas tarefas e nas responsabilidades, ele vivia para me contrariar e, uma vez, frente ao meu filho, ousou bater-me quando o desafiei.

A partir daí começámos a viver com alguma independência. Eu tinha-me licenciado e estava agora numa posição profissional que me ocupava mais tempo fora de casa. E eu própria procurava prolongar esse tempo. Ele tomava conta da casa e deixava-me ir. Comecei a sair e mesmo a viajar sozinha porque com ele era um verdeiro tormento. Apesar disso o casamento durou 17 anos e as relações não passaram de simples amizades.

Às vezes dava comigo a desejar algo diferente a olhar para outros casais que passavam por períodos apaixonados. E interrogava-me como seria sentir algo assim. Algo sem forma nem objecto preciso coexistia comigo, sonhava e amava o infinito e sofria por não ser encontrado.

Porém não era infeliz. Encontrei uma forma de vida que, a determinada altura, quase me satisfazia. E quando pensei que a vida seria mesmo isso essa adaptação permanente, sem grandes sobressaltos nem contrapartidas, encontrei alguém que iria dar início a um novo ciclo.

Àlguém a quem quis de forma absoluta. Mas, ao contrário do que o meu marido me disse, não procurava no outro o mundo burguês da minha infância. Porque esse era um mundo do qual levei a vida a fugir.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

UM NATAL DIFERENTE

Era o primeiro Natal que passava fora de casa. Foram dez meses a tentar sobreviver com o que ganhava no escritório. Porém a vida era muito mais difícil, do que as minhas piores previsões, quando decidira fazer-me à estrada. O dinheiro que trouxe rapidamente se esgotou. Tive que pagar a pensão adiantado, comer e pagar transportes durante um mês antes de receber e, ainda, comprar livros e fotocópias para a faculdade. Foi como se o meu mundo ruísse antes de o construir.
As luzes e os enfeites do Natal faziam-me sentir terrivelmente só. No bolso do casaco uma carta em que a minha mãe me falava como se eu estivesse na maior. Só mesmo a minha mãe para desconhecer o quanto a vida era dura fora do mundo artificial onde sempre vivera!..
Ao deixar a terra e a família jamais poderia imaginar quanta coisa perderia pelo caminho. Contando os tostões e, sem eira nem beira, era como se tivesse perdido outros atributos do passado. Nenhuma das pessoas, que antes me adulava, me voltava a procurar quando me encontrava ainda que, por delicadeza, me pedisse a morada ou o telefone. Apenas com uma única excepção. Nessa altura, enchi-me de brios e fiz questão de pagar o almoço num restaurante incompatível com a minha bolsa. Esta temeridade deixou-me em dificuldades o mês inteiro e nunca mais a repeti.
Luzes, montras enfeitadas, pessoas que cruzavam comigo carregadas de embrulhos. E, dentro do meu bolso, uma única moeda que dava à justa para um café.
Recordo, também, a carta insultuosa do meu pai e que rasguei sem acabar de ler.
E tudo porque quis viver igual a mim própria, trabalhando e sentindo como qualquer pessoa normal.
Gostava de caminhar livremente mas nunca pensei que as ruas fossem tão longas!...
Às vezes a solidão doía tanto, e as dificuldades eram tão intensas, que me chegava uma vontade imensa de voltar. Mas, ao lembrar-me quão pouco me valorizavam por mim própria, optava sempre por não ceder.
Mas estava a ser difícil juntar os cacos e fazer alguma coisa do que sobrara de mim.
Raio de Natal aquele que me fazia sentir tão sozinha!....
Por momentos imaginei a minha bela mãe em frente a uma mesa cheia de iguarias dizendo aquelas futilidades do costume. E o meu pai a oferecer-lhe uma jóia ou um vestido para atenuar as desconfianças sobre as infidelidades que eram constantes. Lembrei-me da minha avó e um nó formou-se-me na garganta. Era a única de quem tinha saudades.
De súbito avisto ao longe um colega de faculdade uns 6 anos mais velho que eu. Também era trabalhador estudante mas estava numa situação um pouco melhor porque trabalhava num Banco. Eu detestava-o por ele me andar sempre a espiar e a aparecer em tudo o que era sítio. Queria estar sozinha e aquelas interferências incomodavam-me de sobremaneira. Porém, naquela antevéspera de Natal em que o frio e a solidão me entorpeciam, mesmo um simulacro de calor humano era bem vindo.
-Olá, diz-me ele
-Olá, digo eu.
- Não vais passar o Natal com a família?
- Não, não tenho para onde ir passar o Natal. E até consigo sorrir quando acrescento: - Se morresse esta noite ninguém dava pela minha falta. Talvez a dona da pensão, acrescento, o único sítio que tenho para onde ir.
Ele aproxima-se e põe-me a mão no braço e olhando-me nos olhos diz esta frase surpreendente:
- Fica comigo e casa comigo.
Olho-o perplexa mas logo ele acrescenta:
- Preciso de ti.
E foi esta última frase que me fez decidir. Não teria suportado uma declaração de amor nem qualquer coisa do género. Apenas a necessidade de partilha de uma noite fria e solitária.
Nesse dia passámos a viver juntos e três meses depois estávamos casados.
Porém aqueles momentos que nos igualaram foram apenas resultado de momentos. Porque viria o dia em que as pessoas que fomos antes apareceriam para nos cobrar o abrirmos mão do passado.
E nenhum de nós estaria preparado para isso.

domingo, 11 de novembro de 2007

FOI TARDE

Foram muitos os dias, vindos da infância, passados na quinta de uns tios meus, nos arredores de Faro. Era uma propriedade esplendorosa, que se estendia por montes arborizados, ostentando um laranjal que, em tempos, abasteceu as fábricas de sumol do Algarve. Ali, com o cheiro da terra, e o contacto com outras vidas, se fez a minha sensibilidade. Talvez esta forma de ser, sonhadora, tenha sido formada por um sol que se espraiva pelas encostas onde as árvores, e plantações, sobressaíam e por onde, muitas vezes, eu passava para ir no barco ancorado a escassos metros.
Poderiam ter sido dias, quase felizes, se eu não fosse da família dos patrões e se isso não me empurrasse para um lado da vida que eu não queria. Poderiam ter sido dias, quase felizes, se pudesse correr e subir às árvores como as outras crianças. Mas eu não era como as outras crianças e isso fazia-me sofrer.
Não conseguia gostar daquilo que queriam que eu gostasse. Não conseguia aprender piano nem ser menina de bem. Apenas queria viver. E viver com emoções fortes, como eu as sentia, sem ser indiferente ao que me rodeava.
Há sempre um acontecimento que altera a sequência de todos os que se seguem. Este deu-se, quando tinha 11 anos, e a minha tia apresentou a mais recente aquisição da propriedade. Tratava-se de um garoto franzino, de olhos grandes e redondos, uns dois anos mais velho que eu. Chamava-se Ilídio e vinha de uma terra alentejana, para mim, desconhecida. Apesar de me recomendarem uma certa distância, em relação aos trabalhadores, depressa me tornei amiga do Ilídio. Soube, assim, que ele tinha 9 irmãos e que passavam fome. Soube também da sua vontade de continuar a estudar. Passei a emprestar-lhe livros, que ele devorava, e ensinava-lhe algumas matérias que aprendia no liceu. Mas esta amizade inocente, que não passara despercebida aos meus tios, estava inevitavelmente condenada. O ensejo apareceu quando o Ilídio foi fazer umas compras para a lavoura. Acusaram-no de roubar embora eu acreditasse, piamente, que estava inocente. E, assim, numa tarde de Agosto, dois dias após eu ter completado 12 anos, Ilídio foi mandado embora com uma pequena trouxa onde cabiam todos os seus pertences. Tinha apenas 14 anos e chorava. Ainda o vejo a subir, sozinho, o morro dos montes, em direcção à paragem do autocarro que o levaria às suas origens. E ainda sinto a mesma revolta que me incendiou, na altura, e fez com que os meus olhos ficassem enxutos.
E foi, nessa altura, que jurei a mim própria que partiria. E que um dia iria procurar o Ilídio.
Porém foram precisos mais 6 anos para dar o primeiro passo. Tinha entrado na Faculdade de Direito e os meus pais compraram-me um renault 16 branco, novinho em folha. Porém, eu não via o carro mas a emancipação, que o meu pai me concedeu, para tirar a carta (a maioridade só se atingia aos 21 anos).
E, assim, quando parti para Lisboa, em vez da Faculdade, fui trabalhar. Os estudos ficaram para trás, os cursos foram outros e as condições de vida bem agrestes. A ginástica para sobreviver era difícil, como difícil era abdicar de tudo a que estava habituada. O curso era tirado à noite, com dificuldades acrescidas e, por vezes, mal alimentada. Pouco tempo depois casava-me com um colega de Faculdade tão pouco abonado quanto eu.
Porém, nunca deixei de procurar o Ilídio embora muito pouco soubesse sobre ele. Escrevi para diferentes autarquias, procurei em listas de recrutas mas os meus recursos eram agora muito limitados. Sem dinheiro nem influências muitas portas, que antes estavam abertas, se tornaram intransponíveis. Mas todos os esforços pareciam inúteis.
Com o 25 de Abril os trabalhadores foram abandonando a propriedade dos meus tios. Por mero acaso, encontrei um deles, em Lisboa, que me disse que o Ilídio tinha morrido tuberculoso mas que tinha tomado conhecimento que eu o procurava.
Em estado de choque ainda pergunto: - Mas se ele soube porque não me deixou encontrá-lo?
- Por vergonha, menina, respondeu o meu velho Mateus.
- Vergonha? Ele?
- Pois, o que é que a menina quer? Pobre é assim!....
Ah mas não haverá um mundo em que não haja pobres para serem assim?, pergunto a mim mesma. Porém esta interrogação espalhou-se pelo tempo dos muitos anos que se seguiram. Anos de avanços e recuos. Anos em que, depois da conquista, entreguei de mão beijada os meus troféus.
Sim, porque o mundo é grande e nós somos pequenos. E as distancias dentro de nós são curtas.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

DESPERTAR

Confesso que vivi, diz Pablo Neruda. E eu também. Feito um balanço dos anos decorridos sinto que foram vividos de punho aberto, ricos em experiências e em diversidade. Acho que vivi várias vidas numa só vida e, por isso, costumo dizer: quando partir não me chorem.
Fui filha única numa família que tinha recursos acima da média. Quando fui para a escola, uma escola oficial que não distava muito da casa dos meus pais, tive que tomar contacto com outras crianças que viviam com dificuldades. Essas crianças, recomendavam os meus progenitores, são crianças "malcriadas" com as quais não me devia relacionar. Não fico convencida com as recomendações e até gosto daquelas crianças soltas, que dizem o que sentem e brincam, riem e zangam-se consoante a vontade. Porém, mal chego à escola, a professora imediatamente me tira todas as ilusões de uma aproximação.
A filha do sr.engenheiro não pode ser contaminada por aqueles seres impuros e, assim sendo, senta-me na primeira carteira (lugar de honra) tal como a outras crianças provenientes de certas famílias. Depois, deixa uma fila vaga, na horizontal, e, a seguir, senta as outras. Apesar dos meus 7 anos olho, com revolta, para aquela disposição e os meus olhos caem sobre uma garota mais velha que, desde que chegara, não desviava de mim a atenção. Era uma miúda repetente, e alta para a idade, com umas sandálias extremamente velhas, e cozidas com corda, que usava sem meias em pleno Inverno. O cabelo era preto e mal penteado e as roupas velhas e pouco limpas. Chamavam-lhe a "lebre que foge p´ra toca" porque ela fugia, frequentemente, para uma toca onde se refugiava dos maus tratos da casa e da escola. Poucas meninas, e apenas as do grupo detrás, se aproximavam desta criança de 9 anos.
Quando tocava para o recreio a professora garantia, com severidade, a separação dos grupos e eu comia o meu farnel, sem qualquer apetite. Porém "lebre que foge p´ra toca" não tira os olhos dos meus movimentos e do meu lanche enquanto retira, de um guardanapo amassado, um bocado de pão muito escuro, pingado em banha ou em azeite. Porém, aquele pão, de uma qualidade rústica que nunca entrara em minha casa, era também, para mim, de grande atracção. E, assim, passávamos o lanche a olhar uma para a outra e sem tirarmos os olhos do que cada uma comia. A vontade de trocar o farnel começou a criar forma em mim e nela mas a professora, sempre atenta, não dava oportunidade. Porém, um dia, em que uma aluna se magoou a jogar à cabra-cega, o meu lanche foi ter às mãos de "lebre que foge p´ra toca" enquanto o pão, escuro e engordurado, passou para as minhas mãos. Comemos os nossos lanches com um apetite, jamais igualado, todavia, eu fiquei com o guardanapo de xadrez vermelho da "lebre que foge p´ra toca" o que me denunciou.
A professora depois de ter batido desalmadamente à "lebre que foge p´ra toca"(embora a mim nem sequer tenha encostado um dedo), achou por bem avisar o senhor meu pai desta "lamentável" ocorrência. O meu pai ficou possesso mas não costumava passar à acção. Por isso, pôs a minha mãe ao corrente para que esta pudesse actuar. Depois de uma valente tareia, acrescentada por pequenos castigos e palavras duras, retomei os meus lanches, sem voltar a trocá-los, e sem compreender o motivo porque não devia fazê-lo.
Todavia a marca de uma injustiça, que é indelével na alma de uma criança, essa ficou sempre a germinar. E eu sonhava, a olhar o mar e os barcos que partiam, com outros mundos que me chamariam e que iria desbravar sem medo de repartir o pão, sem medo de brincar, sem medo de me encontrar.
E eu fui por esses mundos mas nós voltamos sempre aos mesmos lugares. E foi num desses regressos, num passado recente, que soube da "lebre que foge p´ra toca" que, afinal, se chama Cecília. E soube que ela manifestou, a familiares meus, um grande desejo de me voltar a ver. Tantos anos se passaram sobre as nossas vidas, que era já impossível reconhecermo-nos, a não ser através de um farnel trocado algures no tempo.
Curiosamente, Cecília reconheceu-me, de imediato, mal entrei no café onde me aguardava.
Sorriu com lágrimas e olhando-me nos olhos perguntou: -Ainda trocavas o lanche? -Ainda, respondo eu.
E, pela primeira vez, pudemos abraçar-nos.

sábado, 3 de novembro de 2007

Gente solidária

O episódio que vou contar passa-se em Barrancos já lá vão 22 anos. Hoje Barrancos está diferente. Desde o dia em que a água começou a correr das torneiras, ao som da sambomba e dos foguetes - enquanto o aguadeiro se suicidava, perdida a vontade de viver numa realidade que o excluía -, que um novo ciclo foi iniciado. Mas, eu reporto-me a esse passado distante, em que passava lá uma parte das férias, e em que aprendi a arte de pescar o achegã.
Depois de "empatar os anzóis, colocar as bóias e arranjar o isco fomos pescar: eu, o meu marido, o meu filho de 7 anos, o meu sogro e mais um velhote a quem baptizei de Cafum-Cafum por estar sempre a tossir. O percurso, até à barragem, era feito por caminhos de terra batida. Apesar de nunca ter pescado, era eu quem apanhava mais peixe. E, para isso, havia um segredo. Cafum-Cafum conhecia os sítios onde a pescaria dava e preparava, antecipadamente, uns engodos que atirava para a água nos lugares onde me aconselhava a pescar. A cada lançamento chegavam a vir aos três e quatro achegãs. Eu fazia, assim, inveja a outros pescadores que não percebiam como é que eu apanhava tanto peixe. Cafum-Cafum ria, e eu também, porque aquele era um segredo entre nós. Chegados a casa repartíamos a pesca de forma a ninguém ficar desprevenido.
Naquela manhã o meu sogro e o meu marido optaram por um ponto do rio que distava do lugar onde fiquei com o meu filho e Cafum-Cafum. As margens do rio formavam pequenos charcos xistosos por onde nadavam peixes, cagados, cobras de água e outros viventes próprios do lugar. Recomendei ao meu filho que mantivesse as sandálias calçadas, mas, num ápice, ele tira-as para chapinhar na água e, logo a seguir, grita e vejo-lhe um corte, a todo o comprimento, na sola do pé.
O pânico apodera-se de mim. Porque só sou forte quando não se trata do meu filho. O corte era grande e fundo e sangrava bastante. Ás vezes ele tinha hemorragias e a vacina do tétano estava caducada.
Seguro-o, embrulhado à toalha, e peço a Cafum-Cafum que avise o meu sogro e o meu marido. E logo me arrisco a conduzir sozinha, por carreiros de cabras e propriedades de touros bravos, nos 12 km mais longos de toda a minha vida. O receio de me enganar naqueles caminhos confusos, e a necessidade de transmitir calma ao garoto, absorviam todas as minhas forças. Quase chorei quando avistei o casario e tive a certeza que iria chegar.
Foi só o tempo de tirar as roupas enlameadas e, logo eu e a minha sogra, nos dirigimos ao posto médico o único a que podia recorrer. Mal entrei a angústia dominou-me por completo. Tinha havido um acidente com um camião de trabalhadores e havia várias pessoas feridas. Mais uma mulher que se cortou com vidros e ainda um homem que tinha apanhado uma cornada de uma vaca. Um calor fétido e um cheiro a suor provocavam-me náuseas que procurava, a todo o custo, controlar. Só havia um único médico para toda aquela gente.
Chovem perguntas, quando me vêem entrar, e a minha sogra explica o que aconteceu. Sinto a garganta seca e sem forças para falar. Eis que então sucede algo que nunca esquecerei em toda a minha vida. Todas aquelas pessoas feridas me deram a vez.
Entrei num consultório amplo onde a temperatura devia rondar os 40 graus. Ao centro o médico, com cerca de 35 anos, passa as mãos na testa com ar desconfortado. E diz-me após lhe ter explicado a situação:
- Só me faltava mais esta. Hoje é o dia em que tudo acontece. E, para maior azar, a enfermeira foi fazer um parto à Herdade da Loba.
Nisto, uma ideia lhe ocorre. -Mas é duma pessoa como você que estou a precisar. Olhe, enxote-me estas moscas, deite o seu filho na marquesa, abra aquele armário, traga-me aquela pinça. Um novo pânico apodera-se de mim. É que não consigo ver sangue nem agulhas. Mas penso: se desmaiar já estou no gabinete do médico. Mas não desmaiei e consegui segurar o meu filho enquanto o pé era suturado e lhe era injectado o antibiótico e a vacina.
A seguir entreguei-o à minha sogra e ao meu marido, que entretanto tinha chegado, e fiquei no posto a auxiliar o médico até que todos os que estavam na sala fossem atendidos. Era o mínimo que podia fazer por aquela gente que, de forma tão altruísta, me tinha dado a vez.
Quando saí do consultório era já noite. Uma noite calma e morna como as noites alentejanas. Muitas pessoas estavam sentadas à porta e havia quem entoasse canções à moda barranquenha.
E, curiosamente, apesar do dia estafante não estava cansada.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

COMO SE CRIAM RAÍZES

Barrancos, tal como o nome indica, situa-se entre montes e ravinas. Após uma meia hora de curvas apertadas, que antecedem a chegada a esta vila alentejana, ela aparece com todo o seu esplendor. Um casario branquinho, com ruas estreitinhas, recebe os forasteiros com um ar simultaneamente cordial e desconfiado. Mais próxima da espanhola Ensinasola, que de qualquer povoação portuguesa, esta vila tem características muito próprias quer em termos de tradições, cultura e até de dialecto.
Conheci Barrancos quando me casei, já lá vão mais de trinta anos, e logo me apaixonei por aquele lugar único, onde se ouve o cantar dos pássaros e o marulhar das fontes, onde os rios correm sem pressa e onde as pessoas entram pelas casas umas das outras sem pedir licença.
Porém, para entrar e viver nesta comunidade é preciso passar por todo um conjunto de provas e etapas. Quando se chega é-se olhado como avis rara. E, ao caminharmos pelas ruas empedradas, se subitamente nos voltarmos, verificamos todos os batentes das janelas a fecharem. Rostos que nos espiam mas também nos amam quando acreditam em nós.
A primeira vez que lá pernoitei acordei, pela manhã, com o sino da igreja a repercurtir as suas badaladas pelos montes e a nos fazer sentir a alma lavada de tão forte. Junto à lareira a minha sogra tinha esmerado a sua arte em tortas e enchidos e o café, feito no pote de barro, quedava quentinho na lareira.
Porém, para uma cidatina habituada à bica, por melhor que fossem os pitéus, a falta de cafeína era absolutamente intolerável. Os meus sogros indicaram-me um sítio onde podia tomar café expresso. Era na sociedade dos pobres, mesmo em frente à sociedade dos ricos. Era só descer a rua, não havia como enganar. Pareceu-me ver no rosto deles, tal como no do meu marido - que não me acompanhou -, um ar de gozo. Bem, mas devia ser só impressão minha, pensei.
Desço a rua e entro na sociedade onde cerca de uma dúzia de homens estavam sentados às mesas. Chego ao balcão, vejo a grande máquina de café, e peço a minha bica com o coração aos pulos. Mas o senhor do balcão estava completamente indiferente à minha ansiedade pelo café, entretido a preparar pires e mais pires de tapas e copitos e mais copitos de vinho branco. E eu toca de esperar. E ele toca de não me ligar nenhuma. Quando já estava quase a lembrar-lhe que tinha pedido um café ele pôs junto a mim, no balcão, os 13 copitos de vinho branco e os 13 pires de tapas que tinha estado a preparar. Explicou-me então que, quando qualquer forasteiro entrava naquela sociedade, pela primeira vez, era tradição que cada um dos presentes lhe oferecesse um copito de vinho e um pires de tapas. O forasteiro deveria aceitar todas as tapas e copitos e, depois de comer e beber, deveria oferecer uma rodada aos presentes.
Parece que, tirando a mulher do Presidente da Câmara (e essa era da terra), nenhuma outra tinha entrado assim sozinha na dita sociedade. Eu era portanto a primeira a submeter-me à prova.
Assim sendo, bebi os 13 copitos de vinho branco, comi os 13 pires de tapas tomei o meu tão desejado café e paguei a rodada.
E ... passei todo o resto do dia com a minha sogra a fazer-me chá e a pôr-me rodelas de batata na cabeça.
Porém tinha dado um enorme passo na aceitação.

domingo, 28 de outubro de 2007

METAMORFOSE

Quando nos apaixonamos sentimos que tudo adquire uma dimensão nova. Olhamos as mesmas coisas com outros olhos e, mesmo aquilo que nos faria rir se não estivéssemos apaixonados, passa a ser a coisa mais natural deste mundo. É o desabrochar de uma interioridade onde tudo parece estar certo. A nossa sensibilidade fica mais atenta a pormenores que antes nos eram indiferentes. As sensações e as aprendizagens multiplicam-se e nasce, como por encanto, uma capacidade inovadora, valências nunca antes imaginadas, forças até então adormecidas. Por tudo isto eu passei, quase a entrar nos entas, e por tudo isto enfrentei todas as guerras e tempestades. Cortei com o casamento, com os amigos, com familiares, com tudo o que constituíra toda a minha vida. Cortei até comigo própria como se não houvesse outro caminho à minha frente.
Pouco tempo depois de conhecer o Joaquim estávamos a viver juntos. Esperámos pouco mais de seis meses até nos divorciarmos. Eu fiquei com o meu filho e essa foi a única coisa que não perdi.
Porque a minha entrega foi tão completa que não sobrou espaço para mim. Nem mesmo a ilusão de poder ser eu.
Já não era a mulher irreverente, e sempre bem disposta, com a resposta pronta e a espontaneidade presente. Agora media as palavras, e os gestos, e os meus olhos ficaram baços e frios. As roupas informais, ou de um bom gosto simples, deram lugar a modelos de estilistas da praça que me descaracterizavam e davam um ar, aos meus olhos, fútil. A licenciatura também já não bastava e, por isso, tirei outro curso e especializações, sem saber bem para que serviam, só porque o Joaquim me incitava a tirar. Apostei na carreira, matriculei-me num partido e até ia a missas, casamentos e funerais, sem ser crente, e fazendo o frete, só porque ele fazia questão que fosse. Eu já não existia como pessoa. Era apenas uma extensão dele. E ele era um homem que vivia para o status, o poder e o dinheiro. A princípio eu não via, ou não queria ver. Porém, aos poucos, o meu deus foi mostrando os seus pés de barro e a cair do altar onde eu o idolatrara.
Ao fim de seis anos já não aguentava mais festas e banquetes nem conhecer mais pessoas vazias e desinteressantes. Joaquim sugeria-me, de vez em quando, que seria "conveniente" casarmos. Porém, o meu sonho de viver com ele, para todo o sempre, estava cada dia mais ameaçado. Mas, foi numa certa manhã de domingo em que, na missa, procurava ocultar a minha falta de jeito, e de crença, para lidar com o missal e entoar os salmos, que sofreu um rombo irreversível. Era um suplício que me envergonhava isto de ter que o acompanhar à missa. Sentia que tudo aquilo era rídiculo e, por mais que olhasse para o altar à procura de Deus, a fé nunca me chegava. Curiosamente, ele também não acreditava. Ia para aparecer e falar com pessoas influentes. Eu também não entendia porque é que ele precisava de conhecer tanta gente, de ter uma empresa, ser administrador de outra do Estado e ainda dar aulas na Faculdade. Nada para mim fazia sentido mas, mesmo assim, ainda lhe dedicava uma devoção sem limites que não me permitia encarar a vida sem ele. Naquela tarde tinhamo-nos zangado pela primeira vez. Ele tinha-me admoestado sobre o meu comportamento na missa e tinha voltado a insistir na ideia do casamento. As lágrimas quase me saltaram e não sou de chorar. A ele não lhe passou despercebida a minha angústia e, como muitas vezes fazia, foi buscar-me um ramo de flores amarelas, campestres, que uma vez lhe disse que gostava. Mas eu gostava daquelas flores espalhadas pelos campos, com as raízes presas à terra. Vê-las cortadas e a morrer nas jarras era para mim motivo de desgosto.
Foi quando me estava a vestir para mais um jantar, e olhei a minha figura reflectida no espelho, que me dei conta que aquela mulher não era eu. E pela primeira vez apercebi-me que ia começar a odiá-lo. E eu precisava amá-lo para que a vida tivesse sentido.
Só havia uma forma de conservar o que de muito especial tínhamos tido. Momentos inigualáveis dos quais nunca me arrependi.
Ele não fez nada para me reter. Apenas me pediu que esperasse uns três dias para eu sair quando ele estivesse ausente no estrangeiro. Contudo, mal deu de costas, procurei pôr tudo em ordem e não esperar pelo seu regresso. A tarefa estava facilitada pelo facto de nunca me ter desfeito da minha casa e ter trazido para esta poucos dos meus pertences. Procurei não levar nada que fosse valioso, nem mesmo roupas. Uma ou outra coisa simbólica talvez. As ilusões precisam de um espaço grande mas as realidades cabiam numa mala pequena. Uma mala que fechei sem que a mão me tremesse.
Apesar de ter sido a pessoa mais importante da minha vida, foi também aquela de quem mais me afastei. Apaguei dele todos os registos das minhas agendas, mudei os números de telefone e emiti todos os sinais de que não queria ser encontrada.
Só nos voltámos a ver cerca de três anos depois. E por acaso na exposição do corpo humano. Soube então que, tal como eu, continuava sozinho. Porém o seu ar era o de uma pessoa que queria e sabia o caminho que trilhava. A separação imprimiu em cada um de nós marcas que nos demarcavam. De jeans e mala ao tiracolo, eu nada tinha a ver com aquele homem elegante e sofisticado. Demos de caras e ele riu olhando-me de alto a baixo: - Agora és mesmo tu! E eu respondi: E tu também agora és mesmo tu! Ele ficou sério mas depois com aquele sorriso lento que me amolecia disse olhando-me nos olhos: - Eu não teria assim tanta certeza.
Despedi-me apressada e recusei o convite para o café. Senti que ainda havia algum fogo sob as cinzas. Um fogo que, no meu caso, não pretendia apagar e, muito menos ainda, reacender.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

UMA PRENDA INVULGAR

O dia estava a ser difícil. Duas funcionárias estavam de baixa, havia o correio por organizar e, para cúmulo, o motorista ainda não aparecera e já passava das 11h-00. Como uma desgraça nunca vem só os telefones não paravam de tocar porque tinha havido uma avaria, num terminal, e era um pandemónio daqueles que ninguém se entende.
Estava a olhar para a confusão em que estava o gabinete quando, finalmente, o motorista chegou. Era um homem dos seus 40 anos, seco e eficaz. Tinha o vício dos copos, absolutamente incompatível com as funções que exercia e, para além disso, tinha vários ofícios com que procurava colmatar as dificuldades da vida e sustentar uma família numerosa. Falávamos pouco mas eu sentia que ele não gostava de mim. Porém, naquela manhã, ele decidiu ser explícito quando lhe pedi para fazer algumas entregas. Olhou-me directo nos olhos e disse-me de forma clara e desafiadora: - Desculpe que lhe diga mas não gosto de si. Acho-a uma pessoa fria, vaidosa e autoritária. Bem, e até lhe digo mais: também não gosto de ser mandado por uma mulher. Depois de refrear uma resposta que poderia sair arrevesada, limitei-me a perguntar: - O seu partido não defende a igualdade entre homens e mulheres? - Defende, mas são outras mulheres diferentes da doutora. São mulheres que lavam a roupa, fazem comida e criam os filhos. Mulheres que arregaçam as mangas, entende? Não respondi e logo ele acatou as minhas indicações sobre as voltas que tinha que dar pelas diferentes sucursais. Mas fiquei triste quando ele saiu. Aquelas palavras doeram-me de sobremaneira. Porque eu tinha a consciência que iniciara uma segunda etapa de vida em que regredira como ser humano. "Guerreiro", o motorista, não tinha sido o único a criticar-me. As emoções ainda estavam frescas quando, passados uns três dias, "Guerreiro" apareceu perdido de bêbado. Ele era useiro e vezeiro no vício dos copos mas, naquele dia, o homem estava mesmo de todo. Se fosse apanhado pelo controlo da alcoolémia teria uma valente punição e podia até ser despedido. Mal pensei e eis que do Grupo 8 me telefonam a perguntar se podiam mandar subir a equipa de controlo de alcoolemia. Não havia como sair do edifício sem passar pela portaria e, por isso, num acto de completa impulsividade, dei ordem à equipa de alcoolemia para regressar sem fazer os testes. Esta atitude, e por se tratar de uma empresa onde se colocavam questões de segurança, deu brado em tudo o que era sítio. Duas horas depois não se falava noutra coisa. E as opiniões dividiam-se: havia os que achavam que eu tinha tido grande coragem e generosidade, outros achavam que eu era uma irresponsável sem perfil para aquele cargo, e outros iam ainda mais longe dizendo que nunca deviam ser nomeadas mulheres para certas funções.
Por sorte o instrutor do inquérito era amigo e o castigo limitou-se a uma repreensão escrita que apenas me prejudicou na avaliação de desempenho imediata. "Guerreiro" esse mudou por completo. Daí em diante passou a ser a minha sombra e a consagrar-me uma devoção comovente. E embora lá fosse bebendo o seu copito nunca mais deu aso a uma situação como aquela. *************************************************************
Passados seis anos eu estava de partida. Tinha-me despedido de toda a gente, alguns com quem convivi mais de duas décadas, e o gabinete estava vazio. Uma coisa me preocupava na hora de partir. Era a situação do Guerreiro. As empresas são autênticas arenas onde as pessoas se degladiam. Um mundo que me desumanizou e do qual não sinto saudades. Porém todos aqueles que não conseguiram dobrar-me iriam ter no "Guerreiro"um alvo fácil. Além de beber uns copitos era comunista e sindicalista ferrenho. Tudo isso o tornava extremamente vulnerável.
Pensava nisto enquanto me ocorria que não me despedira de um grande amigo por não ter conseguido encontrá-lo. Claro que lhe podia telefonar e encontrarmo-nos noutra altura mas, naquele momento, tinha pena que ele não estivesse ali. Pego no resto dos pertences e eis que o meu amigo "AF" abre a porta do gabinete. Vinha esbaforido mas respira fundo quando me vê.
- Ainda bem que ainda consegui apanhar-te! Sabes é que eu pensei que tinha que te arranjar uma prenda mas tinha que ser uma coisa que tu gostasses mesmo. Sei que não gostas de flores nem essas coisas que normalmente as mulheres gostam e, por isso, decidi dar-te isto.
E estende-me um papel que olho perplexa enquanto ele acrescenta:
-Passei todo o dia na Administração e na Direcção de Pessoal para conseguir transferir o "Guerreiro" para o meu departamento. Não queria que te fosses embora com essa preocupação!
E os olhos turvaram-se-me quando o abracei.

sábado, 20 de outubro de 2007

UMA SOGRA ESPECIAL

Quando nos casamos não sabemos exactamente com o que é que nos casamos. Só quando nos divorciamos é que nos apercebemos com quantos elementos estávamos casados. Foi o que me aconteceu quando, após 17 anos de casamento, decidi separar-me. Não pude nem quis esconder ao meu marido que amava outro homem. A separação foi muito mais dolorosa do que alguma vez tinha imaginado. Foi um cortar sem fim de laços e afectos cimentados ao longo de toda uma vida. Foi como se eu me despisse de tudo e deixasse de ser eu para voltar a amar. Entre tudo o que tinha que largar, a minha sogra era o que mais me doía. Sim porque eu amava profundamente aquela barranquenha rústica que passou fome e trabalhou de sol a sol e que, aparentemente, nada tinha a ver com comigo. Eu vim de um mundo diferente mais sofisticado e frio, onde pessoas como ela não tinham lugar. Quando me casei ela não estava presente e, quando chegou a hora do filho me levar a conhecer a família, Ti Rosa (nome fictício) deixou de ter sossego. Como é que naquela casa ela ia receber uma pessoa tão diferente dela? Uma casa onde o marido fazia passar o burro por dentro para o pôr no quintal? Ti Rosa perguntava ao marido e às duas filhas o que é que devia fazer e dizer quando me visse. Mas todos os discursos preparados foram desnecessários, como inútil foi tanto nervosismo. A aceitação foi mútua e eu senti que tinha ali uma família rica de afectos. Passado pouco tempo, e com grande pasmo da gente da terra, a nora da Ti Rosa até andava de burro e ia à azeitona em férias ou fins de semana. Aos poucos todos se foram habituando a mim e a ter para comigo manifestações de amizade.
Com o divórcio nunca mais lá voltei. Pouco tempo depois o meu ex-sogro teve uma trombose que o levou à sepultura em menos de um ano. Contou-me o meu "ex" que o pai perguntava sempre por mim mesmo quando já não reconhecia ninguém. Não me senti com coragem para ir ao funeral. Mandei um telegrama embora admitindo sempre que o mesmo não seria bem aceite. Passados 3 meses atendi um telefonema da minha ex-sogra a agradecer o telegrama e a pedir-me desculpa de não me ter ligado mais cedo. E depois disse mais ou menos isto: " Quero que saiba que gosto muito de si e que nada do que se passou irá alterar isso. Pus umas flores na campa do meu marido em seu nome e todos os dias rezo à Nossa Senhora para que olhe por si e para que encontre tudo o que procura". Mulher extraordinária, como era capaz de me dizer isto depois de tudo o que os fiz sofrer? E, embora sinta que não mereço tamanha generosidade, sinto uma enorme gratidão e uma alegria interior reconfortantes.
A partir de então voltámos a ver-nos regularmente. Hoje Ti Rosa, já quase com 90 anos, vive num lar da margem sul. Visito-a de vez em quando e nunca falho o seu aniversário e as festas de Natal. Há amizades que são redentoras e há afectos que nunca se apagam. E há também pessoas extraordinárias. Pessoas que sem nunca terem ido à escola aprenderam a ler e a escrever e, sobretudo, a amar.

sábado, 13 de outubro de 2007

UM LENTO CAMINHO PARA A MORTE

Ela estava junto à banca dos jornais quando sentiu um leve toque no braço. Voltou-se e deparou com um amigo de longa data. Havia pouco mais de um ano que não o via porém, ao encará-lo, com dificuldade conseguiu disfarçar o choque. O efeito era devastador.
-Estás boa?
-Estou, e tu?
-Eu não. Tenho um cancro.
-Ela continuou a disfarçar e, o mais naturalmente que pôde, perguntou?
-E onde é que tens isso?
-No estômago.
-Estás a fazer quimioterapia?
- Ainda não. Tenho que ser operado primeiro. É para sofrer menos no fim. Já está muito avançado. Dentro de um ano já cá não estarei.
De regresso a casa ela ia pensando como a vida era imprevisível e absurda. Aquele homem teve tudo o que um ser humano ambiciona ter. Carreira, sucesso, dinheiro, mulheres que o amaram. Era lindo de morrer. Mas, curiosamente, ela nunca o amou nem se sentiu alguma vez atraída. Gostava daquela amizade calma que os levava a conversar e rir sem nunca ir mais além. E foi isso que perdurou através dos tempos fazendo com que se encontrassem sem ressentimentos. Agora estava cheia de pena dele, não daquela compaixão que humilha mas de uma pena sofrida. Apesar das muitas mulheres que tivera ele estava sozinho e ela não queria nem imaginar como ele se sentiria.
No dia a seguir telefonou-lhe e foram passear. Ambos procuravam que o encontro fosse o mais natural possível e ela hesitava frequentemente em oferecer-se para conduzir ou em perguntar se ele estava cansado. Mas afinal os muitos anos de amizade foram mais fortes e os dois conseguiram falar, e até rir, evitando tacitamente abordar aquele mal sem remédio. Numa esplanada junto ao mar ele até tinha um ar bonito e descontraído e até conseguiu brincar com aquele encontro. Disse que ela o fazia sentir-se tão bem que ele até esquecia, por momentos, que estava tão doente. Falava como se até fosse um bem estar doente só para estar com ela e ela ria e gozava o exagero.
Mas foi naquele dia. Porque cada fracção de tempo tinha um peso diferente nos acontecimentos e nas emoções. Cada 24 horas representava para ele uma aproximação inexorável do fim com uma perda de capacidades galopante. Em cada semana ele dava menos um passo, subia menos um degrau, conseguia estar sentado menos uma hora. Mas não era só o físico que se ressentia. O homem orgulhoso, delicado, que não queria incomodar, foi dando lugar a um outro que ela desconhecia. Agora era ele que pedia, e quase exigia, que ela o acompanhasse e a sua linguagem tornou-se ácida e cortante. Chegou a dizer-lhe que via muitas mulheres como ela no IPO quase passando a mensagem que gostaria de a arrastar consigo neste percurso sem remédio. Tornou-se absurdamente possessivo como um amante ciumento e tirava-lhe das mãos o telemóvel sempre que este tocava. Quando ela não estava com ele, ele queria saber onde estivera e com quem estivera e o que fizera. Esquecia-se que, na qualidade do relacionamento, não fazia qualquer sentido. E a cada dia que passava ela sentia-se emocionalmente mais exausta. Escrevia horas a fio na Internet, falava sem saber bem o que dizia e, por vezes, sentindo-se meio ebria e meio sem jeito.
E o pior ainda está para vir. O fim aproxima-se a passos largos e os meses próximos adivinham-se terríveis. Ela irá assistir a uma degradação psicológica e física de uma crueza jamais imaginada e, curiosamente, ele que lhe dizia que não gostava que ela o visse sofrer, já não se importa.
Ela fecha os olhos e vê a noite tão longa como nunca a imaginaria. Ela própria perdeu peso e tem um ar mais cansado. Precisava viajar, ir de terra em terra como tanto gosta. Agora tinha tempo para isso. Porém ela sabe que não se pode afastar dele durante muito tempo e levá-lo para onde quer que seja é impensável. E sabe também que, por um motivo qualquer que não consegue explicar a si própria, nunca o irá abandonar.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Larga a tua cabana e vem,
vem ver o palácio do senhor
o fruto do teu suor.
***
Larga a tua servidão e vem
vem ver o rico esbanjar
a tua dor.
***
Larga essa prisão e vem
vem ver o soldado morrer
sem valor.
***
Larga o teu medo e vem
ámanhã hás-de ser
de ti senhor.

domingo, 7 de outubro de 2007

REDENÇÃO

Segurou a esferográfica com toda a força e a tal ponto que, se a mesma não fosse de metal resistente, teria acabado por se partir. No trabalho tinham-lhe ordenado que fizesse parte de um júri de selecção que incluiria e excluiria concorrentes segundo critérios, pouco transparentes, de conveniência. Ela sempre se orgulhara do seu perfil de mulher recta, a procurar as soluções mais justas, e aquela imposição era como uma faca que lhe apontavam ao peito.
Se recusasse era o fim da sua carreira e tinha um filho para criar. Talvez significasse também perder o homem que amava. E ela por estes dois era capaz de tudo. A luta interior era muito forte, os dedos apertaram com mais força ainda a esferográfica e ela pôs a sua assinatura.
Um vento frio passou-lhe por cima e acompanhou-a durante vários anos. Anos em que se inscreveu num partido, que nada lhe dizia, porque o companheiro foi servindo de mediador entre ela e um outro lado das coisas. E assim foi singrando na carreira, criando o filho e afastando-se de si própria.
Mas um dia decidiu partir a caneta antes de voltar a pôr outra assinatura. Há sempre um dia e há sempre uma gota de água. Talvez não fosse mais importante aquela que foi mas foi aquela.
Saiu para a rua e andou várias horas meditando. No dia seguinte foi ao partido e entregou o cartão, foi à empresa e negociou a saída e, finalmente, disse adeus ao homem que amava. Foi de tudo o mais difícil mas ela preferiu levar o resto da vida a procurá-lo, dentro de si própria, que continuar a existir na servidão.
O céu ficou mais límpido e, só então, se apercebeu que ainda havia estrelas mesmo que as lágrimas lhe caíssem e estivesse sozinha.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O SOL HÁ-DE NASCER

Um dia a fome há-de morrer
e a luz há-de brilhar no teu olhar.
Não terás que morrer para viver
nem terás que viver p´ra soçobrar.
***
Um dia o sol há-de nascer
e eu estarei lá para te encontrar.
Quero assistir às forças que do vento
mandarão os campos libertar.
***
Então, meu irmão, terás a minha mão
e juntos poderemos caminhar.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

NÃO TEM QUE SER TÃO GRANDE O MUNDO

Não tem que ser tão grande o mundo
nem tão vastos os mares e largo o pensamento.
Não tem que ser tão grande o mundo em que afundo
meus passos sem regresso pelo tempo.
***
Não tem que ser tão grande o mundo p´ra te procurar
nem tão fundas as raízes e o tormento.
Não tem que ser tão grande o mundo para um sentimento
nem tão curta a distância p´ra chorar.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

PROCURO UM MUNDO

Procuro um mundo
sem princípio nem fim,
sem ruídos nem desertos,
um mundo onde os jardins
tenham flores silvestres.
***
Procuro um mundo
onde se possa correr
sem tropeçar
e onde se respire
e possa amar
***
Nas minhas mãos pequenas,
com pouco para dar,
eu hei-de sempre achar
nem que seja uma pedra
para edificar e partilhar
e, assim, correr, viver
e me encontrar.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

PARA ALÉM DE MIM

Não quero que a cada passo que dou além de mim,
a minha voz não passe de um sussuro sem alento.
***
Porque ainda que eu corra contra o vento
não aceito acabar dentro de mim.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

O BALÃO E A ILUSÃO

Comprei-te dois balões naquele dia,
um era azul, o outro era encarnado
e neles pus a minha fantasia
e a esperança de te ver encantado.
***
Era um dia igual a outro dia,
para mim sem qualquer novidade,
derretendo apenas a melancolia
nos balões azul e encarnado.
***
Dei-tos mas tu não os quiseste,
prendi-os com um cordel ao teu carrinho
e tu sacudiste-os e aborreceste.
***
Tinhas então dez meses meu filhinho
não podias ainda entender
a ilusão de um simples balãozinho.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

LIBERTAÇÃO

Vou partir, para algures, aonde a chuva não cai.
Vou enterrar o amor que tive a não sei quem.
Hei-de sentir o peito arfar na correria
e hei-de voltar a ser quem fui
e a ir além.

sábado, 22 de setembro de 2007

O PRIMEIRO DIA DA MENDIGA

Dedico este poema a uma senhora que conheci rica e que, exactamente há dois dias, se me dirigiu, na rua, para me pedir dinheiro para aviar uma receita médica. Disse-me que tinha a casa à venda e que estava numa situação tão desesperada que decidiu estender a mão à caridade. Enquanto me contava as lágrimas não paravam de cair.
A esmola é muito pouco para uma situação destas. Deixo-lhe este poema para que outros o leiam e se questionem sobre o que está a acontecer neste Portugal profundo.

***

Passou por mim, pela primeira vez mendiga,

ela que outrora ordenava e foi rainha.

Passou por mim, e estava tão sozinha,

nos hábitos que acusavam a fadiga.

***

Por umas moedas, de lágrimas consumida,

ela estende a mão pela primeira vez na vida

e também eu, pela primeira vez, ao dar esmola

me senti igual a ela tão mendiga.