sábado, 13 de outubro de 2007

UM LENTO CAMINHO PARA A MORTE

Ela estava junto à banca dos jornais quando sentiu um leve toque no braço. Voltou-se e deparou com um amigo de longa data. Havia pouco mais de um ano que não o via porém, ao encará-lo, com dificuldade conseguiu disfarçar o choque. O efeito era devastador.
-Estás boa?
-Estou, e tu?
-Eu não. Tenho um cancro.
-Ela continuou a disfarçar e, o mais naturalmente que pôde, perguntou?
-E onde é que tens isso?
-No estômago.
-Estás a fazer quimioterapia?
- Ainda não. Tenho que ser operado primeiro. É para sofrer menos no fim. Já está muito avançado. Dentro de um ano já cá não estarei.
De regresso a casa ela ia pensando como a vida era imprevisível e absurda. Aquele homem teve tudo o que um ser humano ambiciona ter. Carreira, sucesso, dinheiro, mulheres que o amaram. Era lindo de morrer. Mas, curiosamente, ela nunca o amou nem se sentiu alguma vez atraída. Gostava daquela amizade calma que os levava a conversar e rir sem nunca ir mais além. E foi isso que perdurou através dos tempos fazendo com que se encontrassem sem ressentimentos. Agora estava cheia de pena dele, não daquela compaixão que humilha mas de uma pena sofrida. Apesar das muitas mulheres que tivera ele estava sozinho e ela não queria nem imaginar como ele se sentiria.
No dia a seguir telefonou-lhe e foram passear. Ambos procuravam que o encontro fosse o mais natural possível e ela hesitava frequentemente em oferecer-se para conduzir ou em perguntar se ele estava cansado. Mas afinal os muitos anos de amizade foram mais fortes e os dois conseguiram falar, e até rir, evitando tacitamente abordar aquele mal sem remédio. Numa esplanada junto ao mar ele até tinha um ar bonito e descontraído e até conseguiu brincar com aquele encontro. Disse que ela o fazia sentir-se tão bem que ele até esquecia, por momentos, que estava tão doente. Falava como se até fosse um bem estar doente só para estar com ela e ela ria e gozava o exagero.
Mas foi naquele dia. Porque cada fracção de tempo tinha um peso diferente nos acontecimentos e nas emoções. Cada 24 horas representava para ele uma aproximação inexorável do fim com uma perda de capacidades galopante. Em cada semana ele dava menos um passo, subia menos um degrau, conseguia estar sentado menos uma hora. Mas não era só o físico que se ressentia. O homem orgulhoso, delicado, que não queria incomodar, foi dando lugar a um outro que ela desconhecia. Agora era ele que pedia, e quase exigia, que ela o acompanhasse e a sua linguagem tornou-se ácida e cortante. Chegou a dizer-lhe que via muitas mulheres como ela no IPO quase passando a mensagem que gostaria de a arrastar consigo neste percurso sem remédio. Tornou-se absurdamente possessivo como um amante ciumento e tirava-lhe das mãos o telemóvel sempre que este tocava. Quando ela não estava com ele, ele queria saber onde estivera e com quem estivera e o que fizera. Esquecia-se que, na qualidade do relacionamento, não fazia qualquer sentido. E a cada dia que passava ela sentia-se emocionalmente mais exausta. Escrevia horas a fio na Internet, falava sem saber bem o que dizia e, por vezes, sentindo-se meio ebria e meio sem jeito.
E o pior ainda está para vir. O fim aproxima-se a passos largos e os meses próximos adivinham-se terríveis. Ela irá assistir a uma degradação psicológica e física de uma crueza jamais imaginada e, curiosamente, ele que lhe dizia que não gostava que ela o visse sofrer, já não se importa.
Ela fecha os olhos e vê a noite tão longa como nunca a imaginaria. Ela própria perdeu peso e tem um ar mais cansado. Precisava viajar, ir de terra em terra como tanto gosta. Agora tinha tempo para isso. Porém ela sabe que não se pode afastar dele durante muito tempo e levá-lo para onde quer que seja é impensável. E sabe também que, por um motivo qualquer que não consegue explicar a si própria, nunca o irá abandonar.

8 comentários:

quintarantino disse...

Lamento!

Afonso Faria disse...

Embora pense que no acto de nascer carregamos com uma verdade - a morte, na maior parte das vezes não estamos preparados, ainda mais quando ela se anuncia de uma forma tão possessiva.Entender? Creio que ninguém entende. Que resta? Acompanhar, tantas vezes dolorosamente em silêncio!Solidariamente!

Alda Inácio disse...

Minha querida, as correntes que nos levam a "ficar" são sempre muito fortes. As correntes da morte esperada é um laço de amor que deixa grande dor no fim. As relações humanas têm tantas correntes sem justificativas que nos acabam por podar nossos sonhos e relegá-los a coisa imprecisa. Só um grande amor pela humanidade é possível para atravessar o vale das tormentas de mãos dadas. Grande contista portuguesa, abraço de Alda

Tiago R Cardoso disse...

Não sei que diga, fiquei com um nó na garganta.

JOY disse...

Ser amigo dá trabalho !
As dependências de relacionamento colocam-nos muitas vezes em situações que se tornam dificeis de gerir,principalmente quando muitos dos nossos actos se tornam obrigações ,por não querermos magoar de quem gostamos, seja em situação for. Gostei do Texto.

JOY

7 disse...

Amar nunca foi fácil, ser amigo também não e então sofrer... Por vezes achamos que somos fortes e ultrapassamos tudo, mas não. Contudo um acto de ser humano é esse que foi feito. Sempre presente, sempre exausta, mas sempre lá...Porquê? Ás vezes nem sabemos porquê, é algo que está dentro de nós, é algo que nos faz diferentes e melhores. Sofrer por alguém que sofre é um acto de louvor, amizade, amor se assim quisermos chamar (pois há várias formas de Amar). Não é um acto de pena, mas sim um sentimento presente de quem é boa pessoa. Beijos.

O Árabe disse...

Expressivo conto, amiga. Entretanto, relevada a crueza da situação, sobra-nos uma verdade: o afeto obsessivo produz, sempre, o seu próprio fim.

AJB - martelo disse...

a vida devia ser boa até mesmo na dor...