domingo, 28 de outubro de 2007

METAMORFOSE

Quando nos apaixonamos sentimos que tudo adquire uma dimensão nova. Olhamos as mesmas coisas com outros olhos e, mesmo aquilo que nos faria rir se não estivéssemos apaixonados, passa a ser a coisa mais natural deste mundo. É o desabrochar de uma interioridade onde tudo parece estar certo. A nossa sensibilidade fica mais atenta a pormenores que antes nos eram indiferentes. As sensações e as aprendizagens multiplicam-se e nasce, como por encanto, uma capacidade inovadora, valências nunca antes imaginadas, forças até então adormecidas. Por tudo isto eu passei, quase a entrar nos entas, e por tudo isto enfrentei todas as guerras e tempestades. Cortei com o casamento, com os amigos, com familiares, com tudo o que constituíra toda a minha vida. Cortei até comigo própria como se não houvesse outro caminho à minha frente.
Pouco tempo depois de conhecer o Joaquim estávamos a viver juntos. Esperámos pouco mais de seis meses até nos divorciarmos. Eu fiquei com o meu filho e essa foi a única coisa que não perdi.
Porque a minha entrega foi tão completa que não sobrou espaço para mim. Nem mesmo a ilusão de poder ser eu.
Já não era a mulher irreverente, e sempre bem disposta, com a resposta pronta e a espontaneidade presente. Agora media as palavras, e os gestos, e os meus olhos ficaram baços e frios. As roupas informais, ou de um bom gosto simples, deram lugar a modelos de estilistas da praça que me descaracterizavam e davam um ar, aos meus olhos, fútil. A licenciatura também já não bastava e, por isso, tirei outro curso e especializações, sem saber bem para que serviam, só porque o Joaquim me incitava a tirar. Apostei na carreira, matriculei-me num partido e até ia a missas, casamentos e funerais, sem ser crente, e fazendo o frete, só porque ele fazia questão que fosse. Eu já não existia como pessoa. Era apenas uma extensão dele. E ele era um homem que vivia para o status, o poder e o dinheiro. A princípio eu não via, ou não queria ver. Porém, aos poucos, o meu deus foi mostrando os seus pés de barro e a cair do altar onde eu o idolatrara.
Ao fim de seis anos já não aguentava mais festas e banquetes nem conhecer mais pessoas vazias e desinteressantes. Joaquim sugeria-me, de vez em quando, que seria "conveniente" casarmos. Porém, o meu sonho de viver com ele, para todo o sempre, estava cada dia mais ameaçado. Mas, foi numa certa manhã de domingo em que, na missa, procurava ocultar a minha falta de jeito, e de crença, para lidar com o missal e entoar os salmos, que sofreu um rombo irreversível. Era um suplício que me envergonhava isto de ter que o acompanhar à missa. Sentia que tudo aquilo era rídiculo e, por mais que olhasse para o altar à procura de Deus, a fé nunca me chegava. Curiosamente, ele também não acreditava. Ia para aparecer e falar com pessoas influentes. Eu também não entendia porque é que ele precisava de conhecer tanta gente, de ter uma empresa, ser administrador de outra do Estado e ainda dar aulas na Faculdade. Nada para mim fazia sentido mas, mesmo assim, ainda lhe dedicava uma devoção sem limites que não me permitia encarar a vida sem ele. Naquela tarde tinhamo-nos zangado pela primeira vez. Ele tinha-me admoestado sobre o meu comportamento na missa e tinha voltado a insistir na ideia do casamento. As lágrimas quase me saltaram e não sou de chorar. A ele não lhe passou despercebida a minha angústia e, como muitas vezes fazia, foi buscar-me um ramo de flores amarelas, campestres, que uma vez lhe disse que gostava. Mas eu gostava daquelas flores espalhadas pelos campos, com as raízes presas à terra. Vê-las cortadas e a morrer nas jarras era para mim motivo de desgosto.
Foi quando me estava a vestir para mais um jantar, e olhei a minha figura reflectida no espelho, que me dei conta que aquela mulher não era eu. E pela primeira vez apercebi-me que ia começar a odiá-lo. E eu precisava amá-lo para que a vida tivesse sentido.
Só havia uma forma de conservar o que de muito especial tínhamos tido. Momentos inigualáveis dos quais nunca me arrependi.
Ele não fez nada para me reter. Apenas me pediu que esperasse uns três dias para eu sair quando ele estivesse ausente no estrangeiro. Contudo, mal deu de costas, procurei pôr tudo em ordem e não esperar pelo seu regresso. A tarefa estava facilitada pelo facto de nunca me ter desfeito da minha casa e ter trazido para esta poucos dos meus pertences. Procurei não levar nada que fosse valioso, nem mesmo roupas. Uma ou outra coisa simbólica talvez. As ilusões precisam de um espaço grande mas as realidades cabiam numa mala pequena. Uma mala que fechei sem que a mão me tremesse.
Apesar de ter sido a pessoa mais importante da minha vida, foi também aquela de quem mais me afastei. Apaguei dele todos os registos das minhas agendas, mudei os números de telefone e emiti todos os sinais de que não queria ser encontrada.
Só nos voltámos a ver cerca de três anos depois. E por acaso na exposição do corpo humano. Soube então que, tal como eu, continuava sozinho. Porém o seu ar era o de uma pessoa que queria e sabia o caminho que trilhava. A separação imprimiu em cada um de nós marcas que nos demarcavam. De jeans e mala ao tiracolo, eu nada tinha a ver com aquele homem elegante e sofisticado. Demos de caras e ele riu olhando-me de alto a baixo: - Agora és mesmo tu! E eu respondi: E tu também agora és mesmo tu! Ele ficou sério mas depois com aquele sorriso lento que me amolecia disse olhando-me nos olhos: - Eu não teria assim tanta certeza.
Despedi-me apressada e recusei o convite para o café. Senti que ainda havia algum fogo sob as cinzas. Um fogo que, no meu caso, não pretendia apagar e, muito menos ainda, reacender.

17 comentários:

Zé Povinho disse...

Ser feliz é bom, sem ter-mos de abdicar do que somos. A partilha é diferente da posse, e nós só nos anulamos quando estamos inseguros.
Abraço do Zé

Maria Clarinda disse...

A pior coisa que podemos perder além da personalidade é a identidade...como é bom podermos saltar fora e semos nós mesmas.
Adorei , jinhos mil

Tiago R Cardoso disse...

Grande texto, fascinante.

O importante é nunca perdermos a nossa identidade.

quintarantino disse...

Um texto (auto-biográfico?) intenso e cheio de significado. O meio termo, a entrega e a preservação, são a chave do sucesso, mas nestas coisas muitas vezes é mais fácil falar que fazer.

7 disse...

Um texto da vida...vida que tiveste e se não tivesse existido, hoje não terias a vida que tens. É a nossa história, a vida faz-se de intervalos e temos de vivê-los, pois a seguir só surge a morte. O teu episódio faz parte do intervalo que temos de viver. De um mal, surge sempre um bem, é isso que quero acreditar e acredito que desse mal, tu construíste o teu bem actual. Tudo são episódios, tudo tem as suas marcas, mas não deixa de ser o nosso intervalo de uma caminhada. Quero felicitar-te por mais um passo da tua e espero onga caminhada nos intervalos que existem.

avelaneiraflorida disse...

Metamorfose,
venho retribuir a visita ao meu cantinho!!!

Encontro logo um texto belíssimo e uma reflexão digna!!!!
Quantas vezes somos confrontadas com decisões na vida!!!!
Quais os caminhos a percorrer para manter a nossa identidade/dignidade???

Voltarei, decerto!!!!
Bjks

Manuel Veiga disse...

muito bem (d)escrito. mas quem sou eu para dizer?

grato pela vista e pelo estimulante comentário. espero "ver-te" mais vezes.

David disse...

Excelente, excelente, excelente texto

joshua disse...

Magnífico, saboroso texto.

joshua disse...

Ninho, esse Joaquim, que até poderia ser eu-joaquim para alguém que já tive algures, era um beato de merda: era preciso que o menire obelixiano da vida lhe acertasse em cheio para perceber o quanto te desperdiçou.

A tua história ficará ressoar-me por todo este meu dia, onde me fazia falta um Psicólogo, porque me sinto verdadeiramente só e deprimido.

Obviamente, a culpa não é tua, mas este teu texto acertou-me em cheio no passado.

bjs

joshua

Afonso Faria disse...

Transparente! Ainda bem que não perdeste as asas, e chegado o momento...voaste, reencontraste-te!
Ps. Permite que te altere a tua frase - o meu filho foi a única coisa que não perdi! Não perdeste, G A N H A S T E !BJ

Vieira Calado disse...

Um texto que revela alguém que sabe escrever e que exprime muito bem as metamorfoses da vida (dela) e, porventura, uma ou outra vez, de todos nós.
Gostei muito.

Joana disse...

mais uma vez.... magnifico :)

Beijooo

Até já!**

Dalaila disse...

que não se perca a essência do que somos....

Zé Miguel Gomes disse...

A coragem de se ser quem é.

Fica bem,
Miguel

São disse...

Minha querida, vim agradecer a visita e deparo-me com um texto que me agradou muito.
Sabias que a paixão,segundo António Alçada Baptista, é uma doença da atenção?...
E Deus, de facto, não se encontra nos altares, não!
A minha casa é tua e ficarei grata se lá deixares a tua marca.
Boa ponte|

Pascoalita disse...

Como já decorreu algum tempo desde a minha última visita, desci um pouco atrás na tentativa de "apanhar o fio à meada" que é como quem diz ver o que se tem dito por aqui eheheheh

Sem ter passado por nada parecido, como eu entendi cada palavra, cada sentimento, cada sensação ... sobretudo, a parte final e mais importante ... o facto de seres tu própria e a segurança demonstrada. Gostei de "Metamorfose" ... MUITO!

1 beijo