sexta-feira, 16 de novembro de 2007

UM NATAL DIFERENTE

Era o primeiro Natal que passava fora de casa. Foram dez meses a tentar sobreviver com o que ganhava no escritório. Porém a vida era muito mais difícil, do que as minhas piores previsões, quando decidira fazer-me à estrada. O dinheiro que trouxe rapidamente se esgotou. Tive que pagar a pensão adiantado, comer e pagar transportes durante um mês antes de receber e, ainda, comprar livros e fotocópias para a faculdade. Foi como se o meu mundo ruísse antes de o construir.
As luzes e os enfeites do Natal faziam-me sentir terrivelmente só. No bolso do casaco uma carta em que a minha mãe me falava como se eu estivesse na maior. Só mesmo a minha mãe para desconhecer o quanto a vida era dura fora do mundo artificial onde sempre vivera!..
Ao deixar a terra e a família jamais poderia imaginar quanta coisa perderia pelo caminho. Contando os tostões e, sem eira nem beira, era como se tivesse perdido outros atributos do passado. Nenhuma das pessoas, que antes me adulava, me voltava a procurar quando me encontrava ainda que, por delicadeza, me pedisse a morada ou o telefone. Apenas com uma única excepção. Nessa altura, enchi-me de brios e fiz questão de pagar o almoço num restaurante incompatível com a minha bolsa. Esta temeridade deixou-me em dificuldades o mês inteiro e nunca mais a repeti.
Luzes, montras enfeitadas, pessoas que cruzavam comigo carregadas de embrulhos. E, dentro do meu bolso, uma única moeda que dava à justa para um café.
Recordo, também, a carta insultuosa do meu pai e que rasguei sem acabar de ler.
E tudo porque quis viver igual a mim própria, trabalhando e sentindo como qualquer pessoa normal.
Gostava de caminhar livremente mas nunca pensei que as ruas fossem tão longas!...
Às vezes a solidão doía tanto, e as dificuldades eram tão intensas, que me chegava uma vontade imensa de voltar. Mas, ao lembrar-me quão pouco me valorizavam por mim própria, optava sempre por não ceder.
Mas estava a ser difícil juntar os cacos e fazer alguma coisa do que sobrara de mim.
Raio de Natal aquele que me fazia sentir tão sozinha!....
Por momentos imaginei a minha bela mãe em frente a uma mesa cheia de iguarias dizendo aquelas futilidades do costume. E o meu pai a oferecer-lhe uma jóia ou um vestido para atenuar as desconfianças sobre as infidelidades que eram constantes. Lembrei-me da minha avó e um nó formou-se-me na garganta. Era a única de quem tinha saudades.
De súbito avisto ao longe um colega de faculdade uns 6 anos mais velho que eu. Também era trabalhador estudante mas estava numa situação um pouco melhor porque trabalhava num Banco. Eu detestava-o por ele me andar sempre a espiar e a aparecer em tudo o que era sítio. Queria estar sozinha e aquelas interferências incomodavam-me de sobremaneira. Porém, naquela antevéspera de Natal em que o frio e a solidão me entorpeciam, mesmo um simulacro de calor humano era bem vindo.
-Olá, diz-me ele
-Olá, digo eu.
- Não vais passar o Natal com a família?
- Não, não tenho para onde ir passar o Natal. E até consigo sorrir quando acrescento: - Se morresse esta noite ninguém dava pela minha falta. Talvez a dona da pensão, acrescento, o único sítio que tenho para onde ir.
Ele aproxima-se e põe-me a mão no braço e olhando-me nos olhos diz esta frase surpreendente:
- Fica comigo e casa comigo.
Olho-o perplexa mas logo ele acrescenta:
- Preciso de ti.
E foi esta última frase que me fez decidir. Não teria suportado uma declaração de amor nem qualquer coisa do género. Apenas a necessidade de partilha de uma noite fria e solitária.
Nesse dia passámos a viver juntos e três meses depois estávamos casados.
Porém aqueles momentos que nos igualaram foram apenas resultado de momentos. Porque viria o dia em que as pessoas que fomos antes apareceriam para nos cobrar o abrirmos mão do passado.
E nenhum de nós estaria preparado para isso.

17 comentários:

avelaneiraflorida disse...

Ninho de Cuco,
Nem sempre os dias são de natal!
Nem sempre a vida nos dá prendas! nem sempre aqueles que julgamos perto...podem estar em pleno!
Mas, uma coisa é verdade: VIVEMOS! Somos aquilo em que acreditamos!!!!
E Vale a pena, SEMPRE,ACREDITAR!!!!
BJKS

Pata Negra disse...

Não é pecado nascer-se rico, nem é pecado nascer-se pobre! Pode ser pecado viver-se rico mas também poder ser pecado viver-se pobre!
Fala assim quem acha que o pecado não existe e detesta o Natal! Não gosto do Natal porque a cultura ocidental o transformou num evento de consolação para os que estão bem em oposição a um sentimento de desespero para os que não vão bem!
Casas com tudo rezando aos pobres, casas com nada implorando outros dias - Lares com saúde dando graças ao Menino, a doença à porta recalcada em Natal.
Ninho de Cuco, tenho orgulho de ti!

António de Almeida disse...

-Texto interessante, estou curioso saber mais sobre esta história, já que não é a primeira vez que escreve sobre este episódio.

Peter disse...

Muito boa esta, ao que suponho, biografia.

"E tudo porque quis viver igual a mim própria, trabalhando e sentindo como qualquer pessoa normal."

Faz-me lembrar uma pessoa, de quem sou muito amigo. Rebelde, independente, que tudo abandonou, uma vida de conforto e de riqueza para seguir a sua vocação: ser pintora.
Comeu em Paris "o pão que o diabo amassou". A mãe, às escondidas do pai, sempre que podia ia ajudando-a.
Mas triunfou, já expôs na Gulbenkian ...

quintarantino disse...

Wow... mas tens de admitir que foi um pedido e uma declaração com estilo...

adrianeites disse...

original

Anónimo disse...

Só posso dizer tens um dom natural de desenhar com as palavras....Gosto de te ler.
A blogosfera é fantástica nesta situações, sem ela não iria conhecer a tua escrita, ainda bem que Tu existes e ela também...

7 disse...

Bem hajas mais uma vez pela maneira simples e bela como contas os teus episódios, mesmo que estes sejam tristes. Realmente o Natal é só uma vez por ano e compreendo a melancolia que este traz principalmente quando não estamos bem. O que é certo é que a campanha que o Natal faz a si próprio que acarreta este tipo de sentimento de nostalgia. tudo parece bonito, todos parecem felizes, todos se dão bem, ou seja, o Natal é uma campanha de marketing em que reina a hipocrisia. Não gosto por isso do Natal, Natal para mim é o Ano todo e ponto final. Não alinho neste tipo de campanha, mas percebo que nos torne mais melancólicos principalmente quando não estamos bem...até aqui o efeito marketing tem o seus resultados. Bem, no teu caso surgiu uma prenda, talvez vinda deste marketing e que não teve melhores resultados, pois surgiu numa altura melancólica. Beijos.

DS disse...

Na Cidade onde eu vivia existia uma ponte que na véspera de natal era vigiada, porque os suicídios aumentavam nessa época. A solidão destrói-nos. Precisamos uns dos outros e se o natal servir para juntar pessoas que realmente se amam, ele vale, valerá sempre juntar-se pelo amor e pela solidariedade, qualquer que seja o motivo!

Tiago R Cardoso disse...

é de facto mais um excelente texto.
Vale a pena sermos nós e acreditar mesmo contar tudo e contra todos.

A Lei da Rolha disse...

Quando era mais novo o Natal não simbolizava tanto como agora!
Conheci a minha esposa, começámos a namorar e foi premitida a minha presença no seio da família.
Aí fiquei a descobrir o verdadeiro
espírito natalício!
bjs

turbolenta disse...

Em tempos passados o Natal encantava-me. Era tempo de magia.Gostava daquela época. Exultava de alegria com todas as compras que fazia. Adorava ver as caras de admiração e contentamento quando abriam os presentes que lhes oferecia.Havia presentes para todos. Gastava rios de dinheiro! Ficava profundamente triste quando me apercebia que não gostavam das minhas ofertas.
As iluminações natalícias deixavam-me feliz!Era uma época de aproximação entre as pessoas, da reunião da família que, vinda dos 4 cantos do mundo se reunia para os festejos.
Agora , com todo o marketing , tudo perdeu o encanto. O Natal deixou de ter interesse. Passou a ser apenas bom para as crianças.
É errado escolher-se esta época para se darem prendas e passar a mão pelas costas dos outros, dizendo: Boas Festas!
Há muita hipocrisia e mentira entre as pessoas.
Mete-me pena que uma grande parte das pessoas deste país mal tenham dinheiro para comer, quanto mais para o gastarem em bens não essenciais nesta época.
E é nesta altura que sentimos mais a solidão, que mais nos revoltam as injustiças de que somos alvo, que as diferenças de classes são mais notórias. Que há uma maior diferença entre crianças ricas(que tudo têm e a quem tudo dão) e as pobres, que nem um brinquedo levam.
A pouco e pouco , na minha casa, o Natal perdeu a sua essência. Já nem o peru recheado faz parte da tradição.
Já nada é o que era!
Apenas uma época em que os sentimentos ficam mais à flor da pele e em que, muitas vezes, uma profunda nostalgia toma conta do nosso ser.E não raras vezes dou comigo triste e uma lágrima rola ao canto do olho.
Pelo que deduzi, nem tudo correu bem, ou duradoiro, na vossa vida a dois .
Muitas vezes as "condições exteriores" acabam por nos empurrar para algo que não queríamos.
Errar é humano. Temos de aprender com os nossos erros. A felicidade constrói-se, tantas vezes, depois de passarmos por algo triste que nos marcou profundamente.
boa semana

Dalaila disse...

há dias de natal que podiam prolongar-se....................

Alma Nova ® disse...

Estas tuas narrativas cheias de realismo e sentimento prendem-me os olhos e o coração. São palavras Vivas que falam de verdades inegáveis, assim como da insuficiência do ser humano para lidar com tudo o que a vida lhe põe à sua frente. Mas, sobretudo, falam de coragem, de liberdade e paixão de viver.

adrianeites disse...

bom natal..lol

JOY disse...

É sempre um prazer a leitura destes textos .
Tem prémio mais que merecido no meu blog.

Cumprimentos
JOY

Pata Negra disse...

Bato-te a pála!