sábado, 3 de novembro de 2007

Gente solidária

O episódio que vou contar passa-se em Barrancos já lá vão 22 anos. Hoje Barrancos está diferente. Desde o dia em que a água começou a correr das torneiras, ao som da sambomba e dos foguetes - enquanto o aguadeiro se suicidava, perdida a vontade de viver numa realidade que o excluía -, que um novo ciclo foi iniciado. Mas, eu reporto-me a esse passado distante, em que passava lá uma parte das férias, e em que aprendi a arte de pescar o achegã.
Depois de "empatar os anzóis, colocar as bóias e arranjar o isco fomos pescar: eu, o meu marido, o meu filho de 7 anos, o meu sogro e mais um velhote a quem baptizei de Cafum-Cafum por estar sempre a tossir. O percurso, até à barragem, era feito por caminhos de terra batida. Apesar de nunca ter pescado, era eu quem apanhava mais peixe. E, para isso, havia um segredo. Cafum-Cafum conhecia os sítios onde a pescaria dava e preparava, antecipadamente, uns engodos que atirava para a água nos lugares onde me aconselhava a pescar. A cada lançamento chegavam a vir aos três e quatro achegãs. Eu fazia, assim, inveja a outros pescadores que não percebiam como é que eu apanhava tanto peixe. Cafum-Cafum ria, e eu também, porque aquele era um segredo entre nós. Chegados a casa repartíamos a pesca de forma a ninguém ficar desprevenido.
Naquela manhã o meu sogro e o meu marido optaram por um ponto do rio que distava do lugar onde fiquei com o meu filho e Cafum-Cafum. As margens do rio formavam pequenos charcos xistosos por onde nadavam peixes, cagados, cobras de água e outros viventes próprios do lugar. Recomendei ao meu filho que mantivesse as sandálias calçadas, mas, num ápice, ele tira-as para chapinhar na água e, logo a seguir, grita e vejo-lhe um corte, a todo o comprimento, na sola do pé.
O pânico apodera-se de mim. Porque só sou forte quando não se trata do meu filho. O corte era grande e fundo e sangrava bastante. Ás vezes ele tinha hemorragias e a vacina do tétano estava caducada.
Seguro-o, embrulhado à toalha, e peço a Cafum-Cafum que avise o meu sogro e o meu marido. E logo me arrisco a conduzir sozinha, por carreiros de cabras e propriedades de touros bravos, nos 12 km mais longos de toda a minha vida. O receio de me enganar naqueles caminhos confusos, e a necessidade de transmitir calma ao garoto, absorviam todas as minhas forças. Quase chorei quando avistei o casario e tive a certeza que iria chegar.
Foi só o tempo de tirar as roupas enlameadas e, logo eu e a minha sogra, nos dirigimos ao posto médico o único a que podia recorrer. Mal entrei a angústia dominou-me por completo. Tinha havido um acidente com um camião de trabalhadores e havia várias pessoas feridas. Mais uma mulher que se cortou com vidros e ainda um homem que tinha apanhado uma cornada de uma vaca. Um calor fétido e um cheiro a suor provocavam-me náuseas que procurava, a todo o custo, controlar. Só havia um único médico para toda aquela gente.
Chovem perguntas, quando me vêem entrar, e a minha sogra explica o que aconteceu. Sinto a garganta seca e sem forças para falar. Eis que então sucede algo que nunca esquecerei em toda a minha vida. Todas aquelas pessoas feridas me deram a vez.
Entrei num consultório amplo onde a temperatura devia rondar os 40 graus. Ao centro o médico, com cerca de 35 anos, passa as mãos na testa com ar desconfortado. E diz-me após lhe ter explicado a situação:
- Só me faltava mais esta. Hoje é o dia em que tudo acontece. E, para maior azar, a enfermeira foi fazer um parto à Herdade da Loba.
Nisto, uma ideia lhe ocorre. -Mas é duma pessoa como você que estou a precisar. Olhe, enxote-me estas moscas, deite o seu filho na marquesa, abra aquele armário, traga-me aquela pinça. Um novo pânico apodera-se de mim. É que não consigo ver sangue nem agulhas. Mas penso: se desmaiar já estou no gabinete do médico. Mas não desmaiei e consegui segurar o meu filho enquanto o pé era suturado e lhe era injectado o antibiótico e a vacina.
A seguir entreguei-o à minha sogra e ao meu marido, que entretanto tinha chegado, e fiquei no posto a auxiliar o médico até que todos os que estavam na sala fossem atendidos. Era o mínimo que podia fazer por aquela gente que, de forma tão altruísta, me tinha dado a vez.
Quando saí do consultório era já noite. Uma noite calma e morna como as noites alentejanas. Muitas pessoas estavam sentadas à porta e havia quem entoasse canções à moda barranquenha.
E, curiosamente, apesar do dia estafante não estava cansada.

15 comentários:

Sara Hendrix disse...

Olá. Eu também nao gosto de ver sangue. Uma vi caí e também levei dois ou três pontos no lábio. Mas fiquei bem.

avelaneiraflorida disse...

NINHO DE CUCO,

A Solidariedade, quando existe, não tem tempo nem lugar...

FOTO LINDA!!!! Com a àgua de que tanto gosto...

UM BOM DOMINGO!!!!
BJKS

avelaneiraflorida disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tiago R Cardoso disse...

compreendo a aflição, o meu deu um tombo e levou seis pontos na testa.

excelente o texto e a forma como escreve.

Peter disse...

Gostei bastante. O importante é ser solidário/a.
Conheço esses sítios, pois tenho uma parente em St Aleixo da Restauração.
Também eu sou de uma pequena povoação no Alto Alentejo e, por vezes, conto histórias ali passadas na minha meninice.
Lembro-me perfeitamente do aguadeiro que, na sua carroça adaptada aos cântaros de lata, abastecia a terra.

P.S. - Vou colocar o teu blog nos n/links.

Alexandre disse...

Porque a vida na província é mais genuína... não cansa, apenas se vive!!!

Também postei sobre o Alentejo mesmo agora, esse Alentejo de que temos que usufruir enquanto é «nosso«...

Muitos beijinhos!!!

O Árabe disse...

Belas histórias tens, de Barrancos... é mesmo de dar saudade! :)

irneh disse...

Vim ver do cheiro a café moído e encontro uma bela história passada em terras alentejanas. São assim os alentejanos: cordiais, simpáticos, prestáveis.

Beijinhos

quintarantino disse...

Memórias plenas de significado. Muito bom o texto. Gostei.

O Profeta disse...

Uma cartola de papel
Guarda o sortilégio, a emoção
Um passo de mágica ao acaso
Às vezes solta luz ao coração

Boa semana

Mágico beijo

7 disse...

Lindo...lindo...adorei a forma como contaste o teu episódio que deixa-me dizer, de lindo não teve nada. A maneira como o descreves é belo e mais uma vez senti-me envolvido na leitura de um romance, que como já referiste anteriormente, sabe-se lá se não o poderás fazer ao apresentar assim os teus episódios de vida. Gostei do ambiente rústico e do cheiro a terra que deixas no ar quando falas de Barrancos. Num dia tão "escuro" admirei a tua forma de agradecimento, foi um gesto pleno de entrega para quem não se mostrou egoísta na hora de agradecer. Continua. Adorei! Bem hajas!

PTT disse...

Obrigado pelos comentários mas tenho tido uma vida profissional extremamente complicada, que me impede de dar "assistência" ao blog.

Contudo os meus mais sinceros agradecimentos

PTT

*Um Momento* disse...

Que seriamos nós sem pessoas solidárias?
Adorei o texto
Deixo um beijo desejando uma linda semana
(*)

Pascoalita disse...

Que bela e emocionante estória! Uma mistura de aventura, pânico, angústia, mas com um belíssimo, feliz e gratificante final. Não admira que não esqueças!!!

Com essas gentes, aparentemente ignorantes, temos ainda hoje, muito para aprender em termos de sentimentos e valores humanos. Mas, atenção, por vezes tb têm atitudes meio selvagens.

Não pude deixar de me rir com a cumplicidade e marosca do teu amigo "cafum-cafum" ahahahah

Unknown disse...

A primeira que pesquei fi-lo em Barrancos, e da primeira vez pesquei 3 ou 4 achegãs, ao contrário do meu pai e do meu tio que ficaram admirados com as minhas habilidades piscatórias :p
Barrancos é uma terra que amo desde sempre, que faz parte de mim. E é delicioso ler estas histórias de tempos que não vivi mas dos quais também os meus pais me falam.
Adoro sentir Barrancos, ouvir e falar o seu dialecto musicado e nadar nas suas ribeiras no dias quentes de Verão.
Sempre que lá vou sinto-me em paz, e sempre que de lá venho sinto um aperto e uma vontade de regressar, ainda mal de lá saí.