terça-feira, 6 de novembro de 2007

DESPERTAR

Confesso que vivi, diz Pablo Neruda. E eu também. Feito um balanço dos anos decorridos sinto que foram vividos de punho aberto, ricos em experiências e em diversidade. Acho que vivi várias vidas numa só vida e, por isso, costumo dizer: quando partir não me chorem.
Fui filha única numa família que tinha recursos acima da média. Quando fui para a escola, uma escola oficial que não distava muito da casa dos meus pais, tive que tomar contacto com outras crianças que viviam com dificuldades. Essas crianças, recomendavam os meus progenitores, são crianças "malcriadas" com as quais não me devia relacionar. Não fico convencida com as recomendações e até gosto daquelas crianças soltas, que dizem o que sentem e brincam, riem e zangam-se consoante a vontade. Porém, mal chego à escola, a professora imediatamente me tira todas as ilusões de uma aproximação.
A filha do sr.engenheiro não pode ser contaminada por aqueles seres impuros e, assim sendo, senta-me na primeira carteira (lugar de honra) tal como a outras crianças provenientes de certas famílias. Depois, deixa uma fila vaga, na horizontal, e, a seguir, senta as outras. Apesar dos meus 7 anos olho, com revolta, para aquela disposição e os meus olhos caem sobre uma garota mais velha que, desde que chegara, não desviava de mim a atenção. Era uma miúda repetente, e alta para a idade, com umas sandálias extremamente velhas, e cozidas com corda, que usava sem meias em pleno Inverno. O cabelo era preto e mal penteado e as roupas velhas e pouco limpas. Chamavam-lhe a "lebre que foge p´ra toca" porque ela fugia, frequentemente, para uma toca onde se refugiava dos maus tratos da casa e da escola. Poucas meninas, e apenas as do grupo detrás, se aproximavam desta criança de 9 anos.
Quando tocava para o recreio a professora garantia, com severidade, a separação dos grupos e eu comia o meu farnel, sem qualquer apetite. Porém "lebre que foge p´ra toca" não tira os olhos dos meus movimentos e do meu lanche enquanto retira, de um guardanapo amassado, um bocado de pão muito escuro, pingado em banha ou em azeite. Porém, aquele pão, de uma qualidade rústica que nunca entrara em minha casa, era também, para mim, de grande atracção. E, assim, passávamos o lanche a olhar uma para a outra e sem tirarmos os olhos do que cada uma comia. A vontade de trocar o farnel começou a criar forma em mim e nela mas a professora, sempre atenta, não dava oportunidade. Porém, um dia, em que uma aluna se magoou a jogar à cabra-cega, o meu lanche foi ter às mãos de "lebre que foge p´ra toca" enquanto o pão, escuro e engordurado, passou para as minhas mãos. Comemos os nossos lanches com um apetite, jamais igualado, todavia, eu fiquei com o guardanapo de xadrez vermelho da "lebre que foge p´ra toca" o que me denunciou.
A professora depois de ter batido desalmadamente à "lebre que foge p´ra toca"(embora a mim nem sequer tenha encostado um dedo), achou por bem avisar o senhor meu pai desta "lamentável" ocorrência. O meu pai ficou possesso mas não costumava passar à acção. Por isso, pôs a minha mãe ao corrente para que esta pudesse actuar. Depois de uma valente tareia, acrescentada por pequenos castigos e palavras duras, retomei os meus lanches, sem voltar a trocá-los, e sem compreender o motivo porque não devia fazê-lo.
Todavia a marca de uma injustiça, que é indelével na alma de uma criança, essa ficou sempre a germinar. E eu sonhava, a olhar o mar e os barcos que partiam, com outros mundos que me chamariam e que iria desbravar sem medo de repartir o pão, sem medo de brincar, sem medo de me encontrar.
E eu fui por esses mundos mas nós voltamos sempre aos mesmos lugares. E foi num desses regressos, num passado recente, que soube da "lebre que foge p´ra toca" que, afinal, se chama Cecília. E soube que ela manifestou, a familiares meus, um grande desejo de me voltar a ver. Tantos anos se passaram sobre as nossas vidas, que era já impossível reconhecermo-nos, a não ser através de um farnel trocado algures no tempo.
Curiosamente, Cecília reconheceu-me, de imediato, mal entrei no café onde me aguardava.
Sorriu com lágrimas e olhando-me nos olhos perguntou: -Ainda trocavas o lanche? -Ainda, respondo eu.
E, pela primeira vez, pudemos abraçar-nos.

31 comentários:

Zé Povinho disse...

Há memórias que ficam para sempre, mesmo que de acontecimentos que na altura não tinham explicação, ou talvez por isso mesmo.
Com o passar dos anos perde-se a inocência da meninice e o mundo cruel e injusto revela-se aos nossos olhos.
Abraço do Zé

Afonso Faria disse...

Este testemunho revela a importancia do acto, o quanto se manifestou importante na moldagem da personalidade. Contrariamente ao que disse o meu antecessor, não ser obrigatório perder-se essa inocência, aliás VALOR!Esta riqueza faz a diferença entre as PESSOAS.

7 disse...

Mais uma bela história real na primeira pessoa. Mais um belo texto e mais um acto humano que não se deixou ultrapassar por uma educação mais adocicada. Aos olhos dos outros o teu gesto era repudiado, mas o teu acto revelou o ser humano e generoso que por muitas vezes não se reconhece até nas crianças.

Maria Clarinda disse...

Não tenho palavras para um testo tão belo em toda a sua plenitude!!!
Jinhos!Daqueles no coração.

Maria Clarinda disse...

Desculpa o erro texto.
A pressa por vezes tem destas coisas, neste caso foi a emoção.

Rafeiro Perfumado disse...

Ninho de Cuco, não sou de famílias ricas, antes pelo contrário, mas lembro-me de em tempos a minha mãe querer que eu não me desse com uns mocinhos da minha idade porque tinha medo que eu me deixasse influenciar por eles e começasse a ter menos ambição na vida. Desconheço que raio de ambições seriam essas, uma vez que como criança, e ainda hoje, a minha única ambição é ser feliz. Ainda hoje falo com os "meninos humildes" de quem sou grande amigo. Seguimos vidas diferentes, é um facto, mas a amizade sobreviveu. Espero que a Cecília tenha tido mais sorte na vida, e a minha vénia por este teu texto.

Tiago R Cardoso disse...

muito bom, grande texto.

Aguardo um livro teu.

quintarantino disse...

Excelente. As memórias começam, de facto, a justificar um livro de crónicas.

adrianeites disse...

Coragem , honestidade e muita beleza são os adjectivos que apos a leitura deste post me vêm à cabeça para qualificar este testemunho aqui deixado!

dos melhores e mais genuinos posts que já li na blogosfera..

muito bem,!

SEMPRE disse...

Caros amigos
A minha ideia, quando comecei a escrever estes posts, não foi a de compilar um livro. Foi apenas de ser fazer uma viagem, por dentro de mim mesma, e desenterrar recordações.Isto num espaço em que não apareço identificada. Não seria capaz de ser tão autêntica num livro que me identifique. Bom, e depois há outra questão e essa a principal. Eu pretendo, ao mostrar as diferentes faces das minhas experiências, relevar os aspectos sociais e a revolta em relação a preconceitos e comportamentos desumanos. Outra ilação que eu gostaria que fosse tirada é que, estamos a regredir em termos de valores, e a construir situações, que devem merecer o nosso repúdio, como algumas das que aqui relato. Não pretendo influenciar a análise de cada um mas relevo os aspectos sociais e humanos mais que a história ou o texto em si.
Um abraço

Fátima disse...

Que vivência tão linda! Há coisas na vida que não esquecemos.

:-) Beijinhos

Anónimo disse...

Acho que vivi várias vidas numa só vida e, por isso, costumo dizer: quando partir não me chorem.

...também eu tenho essa sensação, onheço os 4 cantos da existência, A Vida, A Morte, O Bem e O Mal...
...Com todos eles vivo e aprendo cada dia que passa...
...Será com eles que irei partir em paz, e como li algures num blogue...
...Quando morrer não quero que matem flores por mim, plantem uma árvore...

Pascoalita disse...

Engraçado, nas minhas lembranças há uma miúda chamada Lurdes que gostaria de rever. Também ela foi tratada com severidade e tinha todos os motivos para se sentir marginalizada. Talvez por isso tínhamos uma relação bastante próxima.
Trocávamos, ou melhor partilhámos muitas vezes alimentos, mas não tive e provavelmente nunca terei oportunidade de a rever e abraçar.

Mais um texto muito rico. Costei! Fantástica ideia de o partilhar

Anónimo disse...

Vim encontrar aqui uma conterrânea minha. Vim aqui parar por causa do nome, "o Ninho do Cuco". Sabes que tenho uma ternura muito grande pelo cuco. Parece esqyuisito que alguém goste de uma ave preguiçosa e que até nem sabe cantar nada de jeito. Mas quando era pequeno o meu pai sentava-se comigo na Estrada do Caracol, em Sintra, a ouvir um Cuco e parava numa daquelas árvores. Vim aqui e encontra alguém de Sintra, e com um belo espaço. Serei visita assídua.

DS disse...

Uma bela história, que contradiz todos os preconceitos.
A vida é sempre surpreendente, precisamos de estar atentos à sua magia!
Bjos!

Sara Hendrix disse...

Olá, na minha turma somos todos amigos, claro que às vezes gozamos uns com os outros mas somos todos amigos. Acho que ser pobre não interessa.

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Olá amiga, lindo texto;
Tão comovente, fiquei com as lágrimas nos olhos.
Um grande abraço amiga do coração.
Fernandinha

*Um Momento* disse...

Lembranças, recordações...
haja quem nos entenda
Belo...

Beijo ...em ti

(*)

Pata Negra disse...

Uma árvore pode mudar de terra mas nunca poderá perder as suas raízes!

Dalaila disse...

cravo-me sempre nestes teus textos, autênticas crónicas de vida

O Árabe disse...

Comovente amiga! E como é triste e cruel a discriminação!... :(

Peter disse...

O conto é maravilhoso e, como já aqui deixei expresso em comentário anterior, também tenho escrito lembranças da minha infância, vivida no "Alentejo profundo".

Há pouco tempo, numa das raras visitas às minhas "raízes", encontrei um antigo colega da Escola Primária Oficial que me começou a tratar cerimoniosamente.
- Que m... é essa, respondi-lhe, fazes favor de me tratar por "tu".

turbolenta disse...

Há lembranças que perduram por muitos anos que vivamos.Histórias dos tempos de criança, que se perderam no tempo mas que nos marcaram profundamente.
Lembro-me que fiz o liceu num afamado e caro colégio da capital.No antigo 5º ano calhei a ficar numa turma onde estavam algumas "meninas" bem. Uma delas :o pai veio a ser alguém deveras importante neste país.Outra: descendente de ilustres e afamados banqueiros.Casualmente estavam as 2 , sentadas na mesma carteira, e à minha frente.
O director teve a feliz ideia de não deixar entrar no colégio ninguém que não levasse a bata branca vestida.O porteiro não o permitia mesmo. Eram ordens e eram para se cumprir.
Mas, por baixo da bata,conseguíamos aperceber-nos que os vestidos não eram semelhantes.Elas e algumas mais, pessoas de elevadas posses, até motorista tinham para as levar à porta do colégio.
E...lembro-me como se fosse hoje: nunca falaram para quem achavam que era de classe inferior. Uma delas era gozona até dizer chega.Como aluna não valia rigorosamente nada. Mas....como era filha de tão ilustre pessoa, acabava sempre por ser beneficiada em questão de notas. Sei que hoje, a posição que tem,se deve, certamente à família que teve.
Era uma discriminação total entre colegas de turma,alimentada também pelos professores.
Mas o meu pai nunca foi chamado à escola. Nunca foi preciso! Eu estudava afincadamente e tinha todo o brio em ser, nesse campo, muito superior a elas.
E lembro-me que eu levava o lanche e elas iam lanchar à Versailles.
Mas sei, que a classe social, na infância, pode marcar muito as crianças, condicioná-las muito e, muitas vezes, torná-las revoltadas contra tantas injustiças às quais foram sujeitas.
Mas também não tenho a mínima dúvida que a obrigatoriedade do uso da bata foi demasiado importante para suprimir as diferenças sociais das alunas.
E nisso, há mais de 40 anos, o director era um sábio.
Gostei desta maravilhosa história.

Bichodeconta disse...

E SÓ TEM MEMÓRIAS QUEM VIVEU!! Desembrulho por vezes as minhas memórias e o que reencontro é muito bonito, outras vezes nem por isso. Um abraço, ell

António de Almeida disse...

-Mais um belo texto! Quanto ao livro, permita-me, poderá identificar-se tanto, quanto o faz actualmente.

quintarantino disse...

passei para desejar bom fim de semana.

A Lei da Rolha disse...

Fantástica forma de prosa!
Adorei ler e fiquei comovido!
bjs

Unknown disse...

Vim agradecer o apoio ao post que escrevi sobre as AEC.
Bom fim-de-semana.
José Carreira

JOY disse...

Depois de ler este texto tenho pena de ter perdido a ingenuidade de criança ,mais um grande texto.

JOY

avelaneiraflorida disse...

De repente, dei por mim a procurar rever amigas da escola primária...do liceu!!!!!

Algumas vieram de imediato à memória...outras, infelizmente, não me recordo dos rostos nem dos nomes!!!!
Como seria bome voltar a encontrarmo-nos!!!!!

Compadre Alentejano disse...

Excelente post.
Já vi que tens "bagagem" para um bom livro de memórias, oxalá assim o queiras.
Na blogosfera todos somos amigos e, para prová-lo vou colocar o teu blogue nas minhas sugestões.
Um abraço
Compadre Alentejano

www.papaacordas.blogspot.com