quinta-feira, 1 de novembro de 2007

COMO SE CRIAM RAÍZES

Barrancos, tal como o nome indica, situa-se entre montes e ravinas. Após uma meia hora de curvas apertadas, que antecedem a chegada a esta vila alentejana, ela aparece com todo o seu esplendor. Um casario branquinho, com ruas estreitinhas, recebe os forasteiros com um ar simultaneamente cordial e desconfiado. Mais próxima da espanhola Ensinasola, que de qualquer povoação portuguesa, esta vila tem características muito próprias quer em termos de tradições, cultura e até de dialecto.
Conheci Barrancos quando me casei, já lá vão mais de trinta anos, e logo me apaixonei por aquele lugar único, onde se ouve o cantar dos pássaros e o marulhar das fontes, onde os rios correm sem pressa e onde as pessoas entram pelas casas umas das outras sem pedir licença.
Porém, para entrar e viver nesta comunidade é preciso passar por todo um conjunto de provas e etapas. Quando se chega é-se olhado como avis rara. E, ao caminharmos pelas ruas empedradas, se subitamente nos voltarmos, verificamos todos os batentes das janelas a fecharem. Rostos que nos espiam mas também nos amam quando acreditam em nós.
A primeira vez que lá pernoitei acordei, pela manhã, com o sino da igreja a repercurtir as suas badaladas pelos montes e a nos fazer sentir a alma lavada de tão forte. Junto à lareira a minha sogra tinha esmerado a sua arte em tortas e enchidos e o café, feito no pote de barro, quedava quentinho na lareira.
Porém, para uma cidatina habituada à bica, por melhor que fossem os pitéus, a falta de cafeína era absolutamente intolerável. Os meus sogros indicaram-me um sítio onde podia tomar café expresso. Era na sociedade dos pobres, mesmo em frente à sociedade dos ricos. Era só descer a rua, não havia como enganar. Pareceu-me ver no rosto deles, tal como no do meu marido - que não me acompanhou -, um ar de gozo. Bem, mas devia ser só impressão minha, pensei.
Desço a rua e entro na sociedade onde cerca de uma dúzia de homens estavam sentados às mesas. Chego ao balcão, vejo a grande máquina de café, e peço a minha bica com o coração aos pulos. Mas o senhor do balcão estava completamente indiferente à minha ansiedade pelo café, entretido a preparar pires e mais pires de tapas e copitos e mais copitos de vinho branco. E eu toca de esperar. E ele toca de não me ligar nenhuma. Quando já estava quase a lembrar-lhe que tinha pedido um café ele pôs junto a mim, no balcão, os 13 copitos de vinho branco e os 13 pires de tapas que tinha estado a preparar. Explicou-me então que, quando qualquer forasteiro entrava naquela sociedade, pela primeira vez, era tradição que cada um dos presentes lhe oferecesse um copito de vinho e um pires de tapas. O forasteiro deveria aceitar todas as tapas e copitos e, depois de comer e beber, deveria oferecer uma rodada aos presentes.
Parece que, tirando a mulher do Presidente da Câmara (e essa era da terra), nenhuma outra tinha entrado assim sozinha na dita sociedade. Eu era portanto a primeira a submeter-me à prova.
Assim sendo, bebi os 13 copitos de vinho branco, comi os 13 pires de tapas tomei o meu tão desejado café e paguei a rodada.
E ... passei todo o resto do dia com a minha sogra a fazer-me chá e a pôr-me rodelas de batata na cabeça.
Porém tinha dado um enorme passo na aceitação.

18 comentários:

7 disse...

Excelente texto, à medida que li ria-me e situava-me no espaço e como estivesse a ler um livro. Muito boa escrita. Realmente a tradição ainda é o que é em sítios maravilhosos do nosso Portugal. A prova foi superada. Mulher de coragem. Bem hajam estas iniciativas populares e "sogras" do presente ou do passado, para fazer chá e colocar rodelas de batata. Um Beijo.

Afonso Faria disse...

E Barrancos se tornou inesquecível!Que gozo, que gozo!!!
Hoje, será que algu+em na sociedade se lembra do episódio? De ti certamente, pois em algum dia passaste a porta, a prova!Aceite, "PROCLAMOU-SE"! :)

avelaneiraflorida disse...

Que maravilha de "estória"!!!!!

Certamente, que essa prova de coragem permitiu a aceitação de alguém que o merecia!!!

Parabéns!!! E "Brigados" pela partilha ....
Bjks

Pata Negra disse...

Barrancos seduz não sei porquê! Acentei no hotel aGarrocha e subi,parei,subi,parei, desci, parei, desci, parei, um jantar de velhos amigos no hotel aGarrocha, bem atendido, comi, bem acompanhado, bebi, bem tratado, dormi, estremunhado, acordei, subi, desci, e com a cabeça ainda pesada decidi, eu vou voltar aqui!
Barrancos seduz não sei porquê!

Tiago R Cardoso disse...

Excelente texto, como sempre.

Tradições são para se manter, imagino a dor de cabeça.

joshua disse...

Meu Deus, estive um ano a ensinar no Alentejo e como amei aquela paisagem! Fiquei arrebatado por tudo (gente, gastronomia, reverdescer de tudo, estiolar de tudo, o horizonte, a água caminheira, as lebres no caminho, as aves de arribação, as conversas sobre a caça) e, enquanto lá estive, um silêncio denso foi-se apoderando de mim, imerso em infinitas leituras, sempre a caminho da costa vicentina ou do interior a Este de Beja.

Por tudo isto, este teu texto é magicamente evocador para mim.

bjs

joshua

quintarantino disse...

Uma iniciação dessas é digna de ser contada com a mestria com que nos brindou.
Adorei constatar a falta de receio de ser ultrapassada pela voragem dos acontecimentos.

Dalaila disse...

E assim se creiam raízes, a cabeça pode ter andado um pouco à roda, mas valeu a pena, então contado dess forma valeu mesmo.

Beijo e bom fim de semana

C Valente disse...

Zona que não conheço um dia por lá vou passar, mesmo sem ser de festa e touros, que não me entusiasma
Saudações amigas

O Árabe disse...

Sabe, amiga? Cada vez mais me apaixono por este Portugal do meu pai... e que ainda não conheço! Obrigado.

adrianeites disse...

mitica terra!

bom fim de semana

Zé Povinho disse...

Uma cerimónia de iniciação e pêras, ou melhor copos. Valente!
A dor de cabeça passou, por isso ficou a memória do facto hilariante, agora à distância.
Abraço do Zé

Sei que existes disse...

Há!Há! mas que situação!...
Beijo grande

vieira calado disse...

Não lá fui, embora saiba alguma coisa desde o tempo em que convivi com o chefe do pessoal da escola onde eu dava aulas e que era de Barrancos.
Muita coisa: Algarve de há 50 anos.
Obrigado pelas suas palavras no meu blog.
Desejo-lhe bom fim de semana.

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Olá amiga, belo o teu texto. Grata pela visita ao meu cantinho.
Beijinhos,
Fernandinha

São disse...

Adorei Barrancos, o que não admira: toda a minha ascendência é alentejana, graças a Deus!
Obrigada pela visita e pelas palavras : espero vê-la sempre!
Bom fim de semana!

*Um Momento* disse...

Barrancos não conheço. mas pelo que oiço e aqui li, deve ser uma cidadezinha LInda
O texto prendeu-me até á última linha:)
Adorei
Fez-me ainda lembrar a pequenina aldeia de meu Pai, onde também todos olham as pessoas "estranhas" como "avis raras":D
Olha...Adorei mesmo mesmo este texto:o)))
Desejo uma noite sereninha e deixo um beijo com carinho
(*)

Pascoalita disse...

Minha linda,

Conheço muitos desses hábitos das nossas aldeias que não devem ser muito diferentes dos das Beiras.

Ainda hoje, decorridos quase 40 anos, a minha aparição na aldeia, é um acontecimento e reveste-se de tal importância que me admira que não seja assinalada com o toque do sino da igreja eheheheheh

Cena quase semelhante à que contas, se passava há algumas décadas atrás (agora não sei) não com todos os forasteiros, mas apenas com um candidato a desposar uma das "filha" da aldeia... era obrigatório pagar uma rodada (chega a ser 3 garrafões de 5 l de vinho) à rapaziada local! (eu repodiava estas práticas, pq sentia que as moças eram "vendidas" eheheh)

Na minha adolescência tive algum contacto com uma vila alentejana, Almodôvar, e só tenho bem a dizer e guardo boas recordações das suas gentes.
Gostei imenso da forma como está exposta a situação ... sentimo-nos participantes.

Muito bom! Adorei ler