sábado, 5 de janeiro de 2008

UM LENTO CAMINHAR PARA A MORTE(II)

Ao olhar para o , naquele momento, dificilmente se poderá acreditar que esteja tão doente. O cabelo conserva a mesma textura apenas um pouco mais grisalho, os lindíssimos olhos verdes continuam com a mesma expressão, o corpo alto e esguio continua flexível e, no entanto, ele está a morrer.
Olho para ele, nesta passagem do ano, com a certeza plena que, no próximo ano, já não o terei comigo. Ele capta-me o olhar e diz-me quase sorrindo:
- Tens um ar cansado.
- Queres dizer que estou velha e feia, é isso? Brinco eu.
- Sabes bem que não é isso, mas tens um ar cansado.
- Porque não te deitas aqui ao pé de mim?
Capta a minha hesitação e perplexidade e por isso acrescenta:
- Já não sou um perigo para ninguém.
- Para mim nunca foste um perigo, respondo.
Um sorriso franco e travesso consegue tomar-lhe conta do rosto.
- Fui sim, tu é que não deste por isso.
A enfermeira chega para lhe injectar o sedativo. Depois seguro-lhe a mão e aguardo que adormeça. Efectivamente estes paliativos têm feito autênticos milagres. Milagres aparentes mas que lhe restituíram a dignidade e a postura. Que importa que depois não haja vida ou que a vida se apresse quando se evita o sofrimento?
Ao vê-lo adormecido penso num passado em que ele esteve sempre presente na minha vida. Durante quase três décadas esta amizade aguentou todos os acontecimentos que empolgaram a vida de ambos em separado. Casamentos, divórcios, paixões e carreiras nada nos afastou e, sempre que nos encontrávamos, falávamos como se tivéssemos estado sempre juntos e como se soubéssemos sempre o que havíamos de falar. O costumava dizer-me que nunca conseguia falar com ninguém como comigo. Eu sentia, de certo modo a mesma coisa, mas aborrecia-me, por vezes, tê-lo sempre na minha peugada embora, ao mesmo tempo, isso fosse para mim reconfortante.
Recordo quando, na faculdade, estava às voltas com as matrizes e os determinantes e ele se ofereceu para me dar explicações. Recordo quando caminhámos juntos pelas ruas, num dia de chuva miudinha, em que não abrimos os chapéus e nos fomos sentar em cima dum muro junto ao mar. Ele pôs o braço sobre os meus ombros porque sabia que eu estava a sofrer. Ele sabia falar mesmo quando não falava e nunca dizia mais do que devia dizer.
Mas apesar de nunca ter transposto o muro duma amizade sem qualquer segundo sentido, o era conhecido como um grande garanhão nos meios em que frequentávamos. Tanto que havia muito quem não acreditasse que fossemos apenas amigos.
Mas se o meu ex-marido não simpatizava muito com a nossa amizade já o Joaquim, meu companheiro e paixão para sempre, ficava possesso quando via, ou sabia, que o me procurava. Todavia eu defendia esta amizade como algo de muito precioso de que não devia envergonhar-me e, com mais ou menos resmungos, o lá continuava a dar-se comigo e a ser aceite.
A minha amiga Margarida, que teve com o um romance tórrido e que tentou suicidar-se quando este lhe deu o fora, não percebia como é que eu podia não gostar dele doutra forma. Mas a verdade é que ele para mim não era irresístivel apesar de ser culto, inteligente, bem sucedido e o mais bonito dos homens que conheci.
O costumava dizer-me que era o facto de nunca termos ido mais além, no nosso relacionamento, que lhe dava a garantia que, em qualquer ponto das nossas vidas, nos encontraríamos sempre sem mágoas nem ressentimentos.
Porém, agora surgiam-me imagens do passado, a que outrora não dei grande importância, talvez por não me terem trazido as inquietações e os sobressaltos que fazem os sentimentos duplamente sentidos. E dei-me conta que, nos meus percursos de loucura e avidez de vida, de tropeções e de pequenas vitórias, o tinha sido sempre a minha certeza e a minha força, a minha coragem e a minha vontade. Alguém que esteve sempre presente e jamais me cobrou o que quer que fosse. Não consigo imaginar a sua perda sem sentir um vazio insuportável. Um vazio maior do que quando deixei o Joaquim, o homem da minha vida. Claro que havia razões para o deixar. Mas que razões haverá que me mantenham aqui à cabeceira dum homem que não fui capaz de amar mas que também não consigo suportar a ideia de perder?
Se voltasse atrás seria diferente? Não, não seria. Este era o meu porto de abrigo mas não a minha luz. Porém a minha vida sem ele parece esvaziar-se de todo o sentido.
Por que têm que ser tão difíceis as respostas que procuramos e por que a noite tem que ser tão escura?

34 comentários:

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Minha querida amiga, fiquei comovida até ás lágrimas ao ler-te.
Adoro-te faço-te companhia na tua dor.
Muitos beijinhos,
Fernandinha

Alma Nova ® disse...

Essas perguntas são aquelas para as quais nunca achamos resposta...
A amizade é um dos sentimentos mais preciosos que existem. Os amigos verdadeiros são como pérolas que sempre brilham, mesmo na mais escura das noites...e quando se vão o mundo parece perder a luz...mas ficam para sempre no nosso coração.
Emocionei-me ao ler-te...
Um abraço.

António de Almeida disse...

-Este post é duma brutalidade atroz. Porque é uma brutalidade a nossa impotência para lidar com a morte anunciada, para mais quando se trata duma verdadeira amizade. Nestes casos, que fazer? felizmente não tenho muita experiência na matéria, mas julgo que acompanhar sempre o amigo, nunca o esquecer, e sempre que possível lembrá-lo a outros, fazendo com que continue a viver.

quintarantino disse...

Eu acho que a isso se chama amizade no estado mais puro!

Isamar disse...

Não posso perder de vista o teu blogue. Li, calmamente, este post, do princípio ao fim, e transpus-me para uma situação semelhante na minha vida. Há homens/ mulheres que são o nosso porto de abrigo e com quem nunca pensamos ir mais além.No entanto, há sempre quem duvide. Amamo-los e a sua perda é irreparável.Voltarei muitas mais vezes.
Acredita que saio de lágrimas nos olhos.
Beijinhosssss

vieira calado disse...

A amizade é, por certo, mais consistente (persistente) que o próprio amor.

Adrianna disse...

É por isso que eu acho que a Amizade é o mais puro dos sentimentos!

É por isso que eu acho que o envolvimento carnal pode matar a mais bela Amizade!

Tenho apenas um AMIGO com quem mantenho um relacionamento ligeiramente semelhante ao que tens com o Tó e se é verdade que uma ou outra vez passou pelas nossas cabeças irmos mais além, acredito que há muito esta amizade teria acabado se tivessemos dado esse passo.
E Porquê? Também não tneho resposta

Um beijo grande e parabéns pela linda Amizade que desenvolveram. É a essa lembrança que te agarrarás no futuro e que te ajudará a caminhar na vida

Sara Hendrix disse...

Nunca devemos esquecer os amigos.
Especialmente nas horas más. Um abraço!

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

Demora a ler este teu post. Os sentimentos entram em ebulição a cada parágrafo. O nevoeiro embacia-nos os olhos e o coração contrai-se mais rápido.
O Destino é duro de compreender mas a vida é feita de tanta contradição...

Tudo de bom para ti.

Zé Povinho disse...

A amizade verdadeira costuma ser mais sólida ainda que o amor. A amizade é uma riqueza que muitos se esquecem de alimentar....
Abraço do Zé

notyet disse...

Vim aqui agradecer a tua visita e deparei com a tua dor.
Não é só a noite que é escura, por vezes também o dia...
Nunca sei se acrescentamos dias à vida, pois por vezes, creio, acrescentamos dias à morte.

Tiago R Cardoso disse...

Desculpa não comentar melhor o teu texto, digo apenas que me tocou muito a tua dor, em algumas linhas definistes o que é a amizade...

Vladimir disse...

O retrato de uma grande amizade, daquelas que perduram para além da "noite".

Pascoalita disse...

Fiquei muito emocionada com a leitura deste texto e gostaria muito de saber responder-te, mas eu própria desde muito cedo me questiono sobre essas e outras questões e ainda não obtive respostas! Só sei que há coisas que ultrapassam a nossa compreensão!

Há demasiadas situações em que que não nos é permitido intervir e há e há outras que estão ao nosso alcance e deixamos escapar. A vida é uma ingógnita! Uma encruzilhada cheia de abismos e o mundo um lugar muito injusto.

Admiro as pessoas que encontram na sua fé respostas para todas as perguntas.

Mas só o facto de te questionares, de poderes sentir da forma que sentes, o teres vivido intensamente essa bela AMIZADE tem de ser suficientemente gratificante.
Acredita que há pessoas que passam por esta vida sem conhecer esse belo sentimento que é a Amizade!

E já agora, deixa que te diga, respondendo à parte final do texto ...
A AMIZADE É UMA BONITA FORMA DE AMOR!
Da próxima vez que estiveres com o Tó, deposita-lhe na testa um beijo por mim, tá?
1 beijo
Mizé

AJB - martelo disse...

sem avisar e sem dizer, um "amigo" aparece como se fosse magnetismo, quando temos uma aflição... são tão poucos e menos são quando partem sem autorização...

bj

Peter disse...

Compreendo-te. Frequentando a FLL numa 2ª Lic em regime pós-laboral, vim a conhecer uma pessoa de quem me tornei extremamente amigo.
Já morreu. Vim a saber que ela sentia a falta do homem com quem vivia, sempre longe por motivos profissionais e que se queixava do facto às amigas.
Uma delas interrogou-a porque não se relacionava comigo mais intimamente, ao que ela lhe respondeu:
- "Nem pensar! O Peter é como se fosse meu irmão"

E era ...

turbolenta disse...

Essa é mesmo uma grande amizade. Uma amizade sem limites.Mas sobretudo 2 pessoas que estiveram sempre em perfeita sintonia durante toda a vida.
Vá lá saber-se o porquê de nunca o teres conseguido amar.
A vida tem dessas coisas.
Perguntas para as quais nunca acharemos uma resposta.
(e o mais difícil é fazer entender aos outros que haja uma amizade assim tão profunda. Nos nossos dias, em que a amizade é cada vez mais superficial, esta é, no fundo, tal qual uma grande história de amor)

boa semana

Olá!! disse...

Um fantástico "dar de mãos"

Pascoalita disse...

Se calhar, duma forma quase inconsciente, impuseste-te isso a ti própria ... não transpores a barreira por saberes que era a melhor forma dessa Amizade se manter!

E a minha pergunta é: Por que tem de ser assim? Por que não conseguimos que sejam assim duradouras as relações ditas de amor? Por que têm de acabar sempre com mágoa?
Achei este texto super bem escrito e o conteúdo muito bonito, pena o que lhe está adjacente e que te levou a meditar sobre isso e a escreve-lo.
1 beijo

Robin Hood disse...

Ele amou-te tanto que preferiu não te ter a correr o risco de te perder.
Possivelmente nunca ninguém de amou assim e por saberes isso o teu sofrimento é ainda maior.
É uma história cruel que deixa um sabor amargo depois de lida.

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Olá Amiga, voltei para reler o teu texto, que me voltou a comover muito.
Deixo-te um enorme abraço, e muitos beijinhos.
Fernandinha

JOY disse...

Uma amizade assim entre um homem e uma é qualquer coisa de muito bonito e sincero e dificil de manter sem se cair na tentação de dar o passo seguinte , penso que entre voçês existia um amor escondido e que qualquer um dos dois o assim quis manter com medo de se perderem um ao outro, mas ainda assim está aqui uma bela demonstração do que é ser amigo.
Gostei muito do texto.

JOY

Manuel Veiga disse...

mais um belo e sensível texto. comovente. um prazer ler-te...

Laurentina disse...

Ninho quero pedir-te um grande favor.

Que me digas o que se passou ou o que raio mudou para me passares a tratar por você...que no norte é "estrebaria"!!!.
Por favor detesto esse tipo de tratamento, distante...não sei que idade tens nem me interessa para o caso, mas não me faças sentir velha que não sou!

Amei o teu post, fiquei com um monelho de nós na garganta e tb não gosto.


Fica bem
beijão grande

São disse...

A vida nunca é fácil, infelizmente!Mas para a noite não ser tão escura, estão presentes as pessoas amigas!!
Bom fim de semana!

zé lérias (?) disse...

Muitas vezes "esquecemos" quem está mais perto de nós.
A amizade à séria é a coisa mais fabulosa que há.

Bom fim de semana

lua prateada disse...

Comovida...tristeza sem fim me invadiu...porque será???nos perguntamos mas e, onde está a resposta?solidária contigo , sei que não vale de muito mas se algo mais poder fazer...

Quando lá passas
Minha lua desabroxa
Continua,sê firme!...
Tal uma rocha.

Beijinho prateado com carinho

Feliz fim de semana!

SOL

A Lei da Rolha disse...

A perda de um grande amigo é muito doloroso e angustiante, imagino pelo que estás a passar e lamento não te poder ajudar.
Não desanimes porque a vida por vezes é muito injusta !
bjs

David disse...

Tanta emoção, tantos sentimentos...
Tantas perguntas...
De facto porque têm que ser tão difíceis as respostas que procuramos???

Afonso Faria disse...

Estar, simplesmente estar. è tão difícil, tu tens o dom! E, esta provação é enorme pois tu tens capacidade. És eleita.
Feliz de quem te possa ter a seu lado, como cúmplice, amigo, amante.
Esquecia-me, nada acontece por acaso...!
Bj

O Profeta disse...

Olá querida amiga li o teu e texto e saio com a alma ensombrada...


Ergui-me ao vento na tua procura
Fundi um abraço com o sol da tua ternura
Modelei o amor com as palavras mais belas
Curso de errante espírito na tua procura

Porque o pensamento é voo de milhafre
Aprisionado em gaiola de palavras
O infinito e o incomensurável
Volto ao encontro das tuas profundas mágoas

Bom fim de semana


Mágico beijo

avelaneiraflorida disse...

Difícil descrever melhor o sentir UNICO da AMIZADE!
Força!!!!
bjkas!!!!

Isamar disse...

Reli o teu post, podia ter sido escrito por qualquer de nós, assim o soubéssemos fazer como tu. Estas situações repetem-se na vida e não nos apercebemos delas, da sua importância, do grande valor que têm.
É assim a vida. Saio de lágrimas nos olhos.
Beijinhossss

Pata Negra disse...

Há amigos assim...
Há amigos assim que têm amigas que os sabem sentir e descrever, como o Cuco que põe os ovos nos ninhos de outros pássaros.
Um abraço despassarado