segunda-feira, 26 de novembro de 2007

CLASSES E PRECONCEITOS

Não devia haver classe sociais. Aliás sempre achei que não havia. Não pertencemos todos ao género humano sem distinção de raças ou de credos? Por quê então considerar pessoas como sendo do outro lado? Como não fazendo parte da família humana? Era assim que eu pensava mesmo quando via grandes diferenças na forma como viviam certas pessoas. Tinha pena que fosse assim mas nunca subestimei essas pessoas.

Talvez esta visão fosse muito ingénua e eu demasiado bem intencionada. Porém a vida tratou de me fazer menos boa e de mostrar-me que afinal existiam classes. E não só existiam como as pessoas as sentiam e se sentiam de maneira diferente.

E foi o meu marido que me ensinou tudo isso. E ensinou-me de uma maneira crua que eu não estava preparada para aprender. Porque acreditava no companheirismo que me levou a casar num dia 7 de Junho de um ano qualquer. Numa cerimónia no registo que não demorou mais que 7 minutos. Não levámos convidados e até nos esquecemos de levar padrinhos. Tivemos que arranjar dois voluntários à pressa que serviram para mim e para ele. Eu vestia as minhas jeans surradas bem diferentes do vestido de noiva tradicional mas estava quase feliz. Estupidamente feliz por procurar caminhar em sintonia com um desconhecido que, por uma razão qualquer, se cruzou num dado momento no meu caminho. Um momento de fragilidade, diga-se em abono da verdade. E em momentos de fragilidade ama-se o amor mais do que a pessoa.

Porém quando comecei a olhar para a pessoa e a interrogar-me sobre ela descobri que tinha medo. Medo do homem que tinha estado na guerra. Medo do homem que vinha medalhado e com cruz de guerra por ter matado. Olhava-lhe para as mãos e pensava que tudo me era estranho que não havia refúgio dentro de mim própria.

Este ser que me amava, ou que dizia amar-me, tinha dentro de si todo um conjunto de sentimentos tumultuosos. E eu estava no centro desse tumulto. Da paixão doentia que lhe despertava. Da sua submissão extrema e seus desvelos exagerados, do seu ódio profundo e do seu incomensurável sentido de revolta.

Se a aceitação entre mim e a família dele foi aberta e natural entre ele e a minha tudo foi diferente. Ele ia de pé atrás contra a família "burguesa," inimiga das pessoas como ele, e responsável de todos os males que lhe tinham sucedido. Ele defendia, com ódio, a desigualdade em que os ricos apareciam como verdeiros cafajestes que despojavam os pobres dos bens e da alma em proveito das suas futilidades. Era como se os meus pais e eu tivessemos a culpa que ele tivesse ido aos catorze anos para a escola e se formasse em economia e não em medicina como teria desejado.

Os ataques sistemáticos à minha família, a forma como gozava a minha mãe, tudo me doía sobremaneira, porque, mal ou bem, aquelas eram as minhas raízes por muitas e longas que fossem as paragens em sítios distantes.

E um sentimento, que antes não existia em mim, começou a criar forma. É que também agora eu odiava tudo aquilo que ele representava, os ideais que defendia e as coisas que gostava.

A minha capacidade de amar e compreender esgotava-se de dia para dia perante tanta intransigência. A minha sogra chamava-lhe a atenção mas ele não queria saber.

O que parecia vir a ser um relacionamento tranquilo passou a deslizar entre dois extremos: o de uma dedicação absoluta e de uma raiva latente pronta a explodir ao menor passo em falso.

E nada o fazia mudar. Nem mesmo o nascimento do filho. Apesar de excelente pai, colaborante nas tarefas e nas responsabilidades, ele vivia para me contrariar e, uma vez, frente ao meu filho, ousou bater-me quando o desafiei.

A partir daí começámos a viver com alguma independência. Eu tinha-me licenciado e estava agora numa posição profissional que me ocupava mais tempo fora de casa. E eu própria procurava prolongar esse tempo. Ele tomava conta da casa e deixava-me ir. Comecei a sair e mesmo a viajar sozinha porque com ele era um verdeiro tormento. Apesar disso o casamento durou 17 anos e as relações não passaram de simples amizades.

Às vezes dava comigo a desejar algo diferente a olhar para outros casais que passavam por períodos apaixonados. E interrogava-me como seria sentir algo assim. Algo sem forma nem objecto preciso coexistia comigo, sonhava e amava o infinito e sofria por não ser encontrado.

Porém não era infeliz. Encontrei uma forma de vida que, a determinada altura, quase me satisfazia. E quando pensei que a vida seria mesmo isso essa adaptação permanente, sem grandes sobressaltos nem contrapartidas, encontrei alguém que iria dar início a um novo ciclo.

Àlguém a quem quis de forma absoluta. Mas, ao contrário do que o meu marido me disse, não procurava no outro o mundo burguês da minha infância. Porque esse era um mundo do qual levei a vida a fugir.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

UM NATAL DIFERENTE

Era o primeiro Natal que passava fora de casa. Foram dez meses a tentar sobreviver com o que ganhava no escritório. Porém a vida era muito mais difícil, do que as minhas piores previsões, quando decidira fazer-me à estrada. O dinheiro que trouxe rapidamente se esgotou. Tive que pagar a pensão adiantado, comer e pagar transportes durante um mês antes de receber e, ainda, comprar livros e fotocópias para a faculdade. Foi como se o meu mundo ruísse antes de o construir.
As luzes e os enfeites do Natal faziam-me sentir terrivelmente só. No bolso do casaco uma carta em que a minha mãe me falava como se eu estivesse na maior. Só mesmo a minha mãe para desconhecer o quanto a vida era dura fora do mundo artificial onde sempre vivera!..
Ao deixar a terra e a família jamais poderia imaginar quanta coisa perderia pelo caminho. Contando os tostões e, sem eira nem beira, era como se tivesse perdido outros atributos do passado. Nenhuma das pessoas, que antes me adulava, me voltava a procurar quando me encontrava ainda que, por delicadeza, me pedisse a morada ou o telefone. Apenas com uma única excepção. Nessa altura, enchi-me de brios e fiz questão de pagar o almoço num restaurante incompatível com a minha bolsa. Esta temeridade deixou-me em dificuldades o mês inteiro e nunca mais a repeti.
Luzes, montras enfeitadas, pessoas que cruzavam comigo carregadas de embrulhos. E, dentro do meu bolso, uma única moeda que dava à justa para um café.
Recordo, também, a carta insultuosa do meu pai e que rasguei sem acabar de ler.
E tudo porque quis viver igual a mim própria, trabalhando e sentindo como qualquer pessoa normal.
Gostava de caminhar livremente mas nunca pensei que as ruas fossem tão longas!...
Às vezes a solidão doía tanto, e as dificuldades eram tão intensas, que me chegava uma vontade imensa de voltar. Mas, ao lembrar-me quão pouco me valorizavam por mim própria, optava sempre por não ceder.
Mas estava a ser difícil juntar os cacos e fazer alguma coisa do que sobrara de mim.
Raio de Natal aquele que me fazia sentir tão sozinha!....
Por momentos imaginei a minha bela mãe em frente a uma mesa cheia de iguarias dizendo aquelas futilidades do costume. E o meu pai a oferecer-lhe uma jóia ou um vestido para atenuar as desconfianças sobre as infidelidades que eram constantes. Lembrei-me da minha avó e um nó formou-se-me na garganta. Era a única de quem tinha saudades.
De súbito avisto ao longe um colega de faculdade uns 6 anos mais velho que eu. Também era trabalhador estudante mas estava numa situação um pouco melhor porque trabalhava num Banco. Eu detestava-o por ele me andar sempre a espiar e a aparecer em tudo o que era sítio. Queria estar sozinha e aquelas interferências incomodavam-me de sobremaneira. Porém, naquela antevéspera de Natal em que o frio e a solidão me entorpeciam, mesmo um simulacro de calor humano era bem vindo.
-Olá, diz-me ele
-Olá, digo eu.
- Não vais passar o Natal com a família?
- Não, não tenho para onde ir passar o Natal. E até consigo sorrir quando acrescento: - Se morresse esta noite ninguém dava pela minha falta. Talvez a dona da pensão, acrescento, o único sítio que tenho para onde ir.
Ele aproxima-se e põe-me a mão no braço e olhando-me nos olhos diz esta frase surpreendente:
- Fica comigo e casa comigo.
Olho-o perplexa mas logo ele acrescenta:
- Preciso de ti.
E foi esta última frase que me fez decidir. Não teria suportado uma declaração de amor nem qualquer coisa do género. Apenas a necessidade de partilha de uma noite fria e solitária.
Nesse dia passámos a viver juntos e três meses depois estávamos casados.
Porém aqueles momentos que nos igualaram foram apenas resultado de momentos. Porque viria o dia em que as pessoas que fomos antes apareceriam para nos cobrar o abrirmos mão do passado.
E nenhum de nós estaria preparado para isso.

domingo, 11 de novembro de 2007

FOI TARDE

Foram muitos os dias, vindos da infância, passados na quinta de uns tios meus, nos arredores de Faro. Era uma propriedade esplendorosa, que se estendia por montes arborizados, ostentando um laranjal que, em tempos, abasteceu as fábricas de sumol do Algarve. Ali, com o cheiro da terra, e o contacto com outras vidas, se fez a minha sensibilidade. Talvez esta forma de ser, sonhadora, tenha sido formada por um sol que se espraiva pelas encostas onde as árvores, e plantações, sobressaíam e por onde, muitas vezes, eu passava para ir no barco ancorado a escassos metros.
Poderiam ter sido dias, quase felizes, se eu não fosse da família dos patrões e se isso não me empurrasse para um lado da vida que eu não queria. Poderiam ter sido dias, quase felizes, se pudesse correr e subir às árvores como as outras crianças. Mas eu não era como as outras crianças e isso fazia-me sofrer.
Não conseguia gostar daquilo que queriam que eu gostasse. Não conseguia aprender piano nem ser menina de bem. Apenas queria viver. E viver com emoções fortes, como eu as sentia, sem ser indiferente ao que me rodeava.
Há sempre um acontecimento que altera a sequência de todos os que se seguem. Este deu-se, quando tinha 11 anos, e a minha tia apresentou a mais recente aquisição da propriedade. Tratava-se de um garoto franzino, de olhos grandes e redondos, uns dois anos mais velho que eu. Chamava-se Ilídio e vinha de uma terra alentejana, para mim, desconhecida. Apesar de me recomendarem uma certa distância, em relação aos trabalhadores, depressa me tornei amiga do Ilídio. Soube, assim, que ele tinha 9 irmãos e que passavam fome. Soube também da sua vontade de continuar a estudar. Passei a emprestar-lhe livros, que ele devorava, e ensinava-lhe algumas matérias que aprendia no liceu. Mas esta amizade inocente, que não passara despercebida aos meus tios, estava inevitavelmente condenada. O ensejo apareceu quando o Ilídio foi fazer umas compras para a lavoura. Acusaram-no de roubar embora eu acreditasse, piamente, que estava inocente. E, assim, numa tarde de Agosto, dois dias após eu ter completado 12 anos, Ilídio foi mandado embora com uma pequena trouxa onde cabiam todos os seus pertences. Tinha apenas 14 anos e chorava. Ainda o vejo a subir, sozinho, o morro dos montes, em direcção à paragem do autocarro que o levaria às suas origens. E ainda sinto a mesma revolta que me incendiou, na altura, e fez com que os meus olhos ficassem enxutos.
E foi, nessa altura, que jurei a mim própria que partiria. E que um dia iria procurar o Ilídio.
Porém foram precisos mais 6 anos para dar o primeiro passo. Tinha entrado na Faculdade de Direito e os meus pais compraram-me um renault 16 branco, novinho em folha. Porém, eu não via o carro mas a emancipação, que o meu pai me concedeu, para tirar a carta (a maioridade só se atingia aos 21 anos).
E, assim, quando parti para Lisboa, em vez da Faculdade, fui trabalhar. Os estudos ficaram para trás, os cursos foram outros e as condições de vida bem agrestes. A ginástica para sobreviver era difícil, como difícil era abdicar de tudo a que estava habituada. O curso era tirado à noite, com dificuldades acrescidas e, por vezes, mal alimentada. Pouco tempo depois casava-me com um colega de Faculdade tão pouco abonado quanto eu.
Porém, nunca deixei de procurar o Ilídio embora muito pouco soubesse sobre ele. Escrevi para diferentes autarquias, procurei em listas de recrutas mas os meus recursos eram agora muito limitados. Sem dinheiro nem influências muitas portas, que antes estavam abertas, se tornaram intransponíveis. Mas todos os esforços pareciam inúteis.
Com o 25 de Abril os trabalhadores foram abandonando a propriedade dos meus tios. Por mero acaso, encontrei um deles, em Lisboa, que me disse que o Ilídio tinha morrido tuberculoso mas que tinha tomado conhecimento que eu o procurava.
Em estado de choque ainda pergunto: - Mas se ele soube porque não me deixou encontrá-lo?
- Por vergonha, menina, respondeu o meu velho Mateus.
- Vergonha? Ele?
- Pois, o que é que a menina quer? Pobre é assim!....
Ah mas não haverá um mundo em que não haja pobres para serem assim?, pergunto a mim mesma. Porém esta interrogação espalhou-se pelo tempo dos muitos anos que se seguiram. Anos de avanços e recuos. Anos em que, depois da conquista, entreguei de mão beijada os meus troféus.
Sim, porque o mundo é grande e nós somos pequenos. E as distancias dentro de nós são curtas.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

DESPERTAR

Confesso que vivi, diz Pablo Neruda. E eu também. Feito um balanço dos anos decorridos sinto que foram vividos de punho aberto, ricos em experiências e em diversidade. Acho que vivi várias vidas numa só vida e, por isso, costumo dizer: quando partir não me chorem.
Fui filha única numa família que tinha recursos acima da média. Quando fui para a escola, uma escola oficial que não distava muito da casa dos meus pais, tive que tomar contacto com outras crianças que viviam com dificuldades. Essas crianças, recomendavam os meus progenitores, são crianças "malcriadas" com as quais não me devia relacionar. Não fico convencida com as recomendações e até gosto daquelas crianças soltas, que dizem o que sentem e brincam, riem e zangam-se consoante a vontade. Porém, mal chego à escola, a professora imediatamente me tira todas as ilusões de uma aproximação.
A filha do sr.engenheiro não pode ser contaminada por aqueles seres impuros e, assim sendo, senta-me na primeira carteira (lugar de honra) tal como a outras crianças provenientes de certas famílias. Depois, deixa uma fila vaga, na horizontal, e, a seguir, senta as outras. Apesar dos meus 7 anos olho, com revolta, para aquela disposição e os meus olhos caem sobre uma garota mais velha que, desde que chegara, não desviava de mim a atenção. Era uma miúda repetente, e alta para a idade, com umas sandálias extremamente velhas, e cozidas com corda, que usava sem meias em pleno Inverno. O cabelo era preto e mal penteado e as roupas velhas e pouco limpas. Chamavam-lhe a "lebre que foge p´ra toca" porque ela fugia, frequentemente, para uma toca onde se refugiava dos maus tratos da casa e da escola. Poucas meninas, e apenas as do grupo detrás, se aproximavam desta criança de 9 anos.
Quando tocava para o recreio a professora garantia, com severidade, a separação dos grupos e eu comia o meu farnel, sem qualquer apetite. Porém "lebre que foge p´ra toca" não tira os olhos dos meus movimentos e do meu lanche enquanto retira, de um guardanapo amassado, um bocado de pão muito escuro, pingado em banha ou em azeite. Porém, aquele pão, de uma qualidade rústica que nunca entrara em minha casa, era também, para mim, de grande atracção. E, assim, passávamos o lanche a olhar uma para a outra e sem tirarmos os olhos do que cada uma comia. A vontade de trocar o farnel começou a criar forma em mim e nela mas a professora, sempre atenta, não dava oportunidade. Porém, um dia, em que uma aluna se magoou a jogar à cabra-cega, o meu lanche foi ter às mãos de "lebre que foge p´ra toca" enquanto o pão, escuro e engordurado, passou para as minhas mãos. Comemos os nossos lanches com um apetite, jamais igualado, todavia, eu fiquei com o guardanapo de xadrez vermelho da "lebre que foge p´ra toca" o que me denunciou.
A professora depois de ter batido desalmadamente à "lebre que foge p´ra toca"(embora a mim nem sequer tenha encostado um dedo), achou por bem avisar o senhor meu pai desta "lamentável" ocorrência. O meu pai ficou possesso mas não costumava passar à acção. Por isso, pôs a minha mãe ao corrente para que esta pudesse actuar. Depois de uma valente tareia, acrescentada por pequenos castigos e palavras duras, retomei os meus lanches, sem voltar a trocá-los, e sem compreender o motivo porque não devia fazê-lo.
Todavia a marca de uma injustiça, que é indelével na alma de uma criança, essa ficou sempre a germinar. E eu sonhava, a olhar o mar e os barcos que partiam, com outros mundos que me chamariam e que iria desbravar sem medo de repartir o pão, sem medo de brincar, sem medo de me encontrar.
E eu fui por esses mundos mas nós voltamos sempre aos mesmos lugares. E foi num desses regressos, num passado recente, que soube da "lebre que foge p´ra toca" que, afinal, se chama Cecília. E soube que ela manifestou, a familiares meus, um grande desejo de me voltar a ver. Tantos anos se passaram sobre as nossas vidas, que era já impossível reconhecermo-nos, a não ser através de um farnel trocado algures no tempo.
Curiosamente, Cecília reconheceu-me, de imediato, mal entrei no café onde me aguardava.
Sorriu com lágrimas e olhando-me nos olhos perguntou: -Ainda trocavas o lanche? -Ainda, respondo eu.
E, pela primeira vez, pudemos abraçar-nos.

sábado, 3 de novembro de 2007

Gente solidária

O episódio que vou contar passa-se em Barrancos já lá vão 22 anos. Hoje Barrancos está diferente. Desde o dia em que a água começou a correr das torneiras, ao som da sambomba e dos foguetes - enquanto o aguadeiro se suicidava, perdida a vontade de viver numa realidade que o excluía -, que um novo ciclo foi iniciado. Mas, eu reporto-me a esse passado distante, em que passava lá uma parte das férias, e em que aprendi a arte de pescar o achegã.
Depois de "empatar os anzóis, colocar as bóias e arranjar o isco fomos pescar: eu, o meu marido, o meu filho de 7 anos, o meu sogro e mais um velhote a quem baptizei de Cafum-Cafum por estar sempre a tossir. O percurso, até à barragem, era feito por caminhos de terra batida. Apesar de nunca ter pescado, era eu quem apanhava mais peixe. E, para isso, havia um segredo. Cafum-Cafum conhecia os sítios onde a pescaria dava e preparava, antecipadamente, uns engodos que atirava para a água nos lugares onde me aconselhava a pescar. A cada lançamento chegavam a vir aos três e quatro achegãs. Eu fazia, assim, inveja a outros pescadores que não percebiam como é que eu apanhava tanto peixe. Cafum-Cafum ria, e eu também, porque aquele era um segredo entre nós. Chegados a casa repartíamos a pesca de forma a ninguém ficar desprevenido.
Naquela manhã o meu sogro e o meu marido optaram por um ponto do rio que distava do lugar onde fiquei com o meu filho e Cafum-Cafum. As margens do rio formavam pequenos charcos xistosos por onde nadavam peixes, cagados, cobras de água e outros viventes próprios do lugar. Recomendei ao meu filho que mantivesse as sandálias calçadas, mas, num ápice, ele tira-as para chapinhar na água e, logo a seguir, grita e vejo-lhe um corte, a todo o comprimento, na sola do pé.
O pânico apodera-se de mim. Porque só sou forte quando não se trata do meu filho. O corte era grande e fundo e sangrava bastante. Ás vezes ele tinha hemorragias e a vacina do tétano estava caducada.
Seguro-o, embrulhado à toalha, e peço a Cafum-Cafum que avise o meu sogro e o meu marido. E logo me arrisco a conduzir sozinha, por carreiros de cabras e propriedades de touros bravos, nos 12 km mais longos de toda a minha vida. O receio de me enganar naqueles caminhos confusos, e a necessidade de transmitir calma ao garoto, absorviam todas as minhas forças. Quase chorei quando avistei o casario e tive a certeza que iria chegar.
Foi só o tempo de tirar as roupas enlameadas e, logo eu e a minha sogra, nos dirigimos ao posto médico o único a que podia recorrer. Mal entrei a angústia dominou-me por completo. Tinha havido um acidente com um camião de trabalhadores e havia várias pessoas feridas. Mais uma mulher que se cortou com vidros e ainda um homem que tinha apanhado uma cornada de uma vaca. Um calor fétido e um cheiro a suor provocavam-me náuseas que procurava, a todo o custo, controlar. Só havia um único médico para toda aquela gente.
Chovem perguntas, quando me vêem entrar, e a minha sogra explica o que aconteceu. Sinto a garganta seca e sem forças para falar. Eis que então sucede algo que nunca esquecerei em toda a minha vida. Todas aquelas pessoas feridas me deram a vez.
Entrei num consultório amplo onde a temperatura devia rondar os 40 graus. Ao centro o médico, com cerca de 35 anos, passa as mãos na testa com ar desconfortado. E diz-me após lhe ter explicado a situação:
- Só me faltava mais esta. Hoje é o dia em que tudo acontece. E, para maior azar, a enfermeira foi fazer um parto à Herdade da Loba.
Nisto, uma ideia lhe ocorre. -Mas é duma pessoa como você que estou a precisar. Olhe, enxote-me estas moscas, deite o seu filho na marquesa, abra aquele armário, traga-me aquela pinça. Um novo pânico apodera-se de mim. É que não consigo ver sangue nem agulhas. Mas penso: se desmaiar já estou no gabinete do médico. Mas não desmaiei e consegui segurar o meu filho enquanto o pé era suturado e lhe era injectado o antibiótico e a vacina.
A seguir entreguei-o à minha sogra e ao meu marido, que entretanto tinha chegado, e fiquei no posto a auxiliar o médico até que todos os que estavam na sala fossem atendidos. Era o mínimo que podia fazer por aquela gente que, de forma tão altruísta, me tinha dado a vez.
Quando saí do consultório era já noite. Uma noite calma e morna como as noites alentejanas. Muitas pessoas estavam sentadas à porta e havia quem entoasse canções à moda barranquenha.
E, curiosamente, apesar do dia estafante não estava cansada.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

COMO SE CRIAM RAÍZES

Barrancos, tal como o nome indica, situa-se entre montes e ravinas. Após uma meia hora de curvas apertadas, que antecedem a chegada a esta vila alentejana, ela aparece com todo o seu esplendor. Um casario branquinho, com ruas estreitinhas, recebe os forasteiros com um ar simultaneamente cordial e desconfiado. Mais próxima da espanhola Ensinasola, que de qualquer povoação portuguesa, esta vila tem características muito próprias quer em termos de tradições, cultura e até de dialecto.
Conheci Barrancos quando me casei, já lá vão mais de trinta anos, e logo me apaixonei por aquele lugar único, onde se ouve o cantar dos pássaros e o marulhar das fontes, onde os rios correm sem pressa e onde as pessoas entram pelas casas umas das outras sem pedir licença.
Porém, para entrar e viver nesta comunidade é preciso passar por todo um conjunto de provas e etapas. Quando se chega é-se olhado como avis rara. E, ao caminharmos pelas ruas empedradas, se subitamente nos voltarmos, verificamos todos os batentes das janelas a fecharem. Rostos que nos espiam mas também nos amam quando acreditam em nós.
A primeira vez que lá pernoitei acordei, pela manhã, com o sino da igreja a repercurtir as suas badaladas pelos montes e a nos fazer sentir a alma lavada de tão forte. Junto à lareira a minha sogra tinha esmerado a sua arte em tortas e enchidos e o café, feito no pote de barro, quedava quentinho na lareira.
Porém, para uma cidatina habituada à bica, por melhor que fossem os pitéus, a falta de cafeína era absolutamente intolerável. Os meus sogros indicaram-me um sítio onde podia tomar café expresso. Era na sociedade dos pobres, mesmo em frente à sociedade dos ricos. Era só descer a rua, não havia como enganar. Pareceu-me ver no rosto deles, tal como no do meu marido - que não me acompanhou -, um ar de gozo. Bem, mas devia ser só impressão minha, pensei.
Desço a rua e entro na sociedade onde cerca de uma dúzia de homens estavam sentados às mesas. Chego ao balcão, vejo a grande máquina de café, e peço a minha bica com o coração aos pulos. Mas o senhor do balcão estava completamente indiferente à minha ansiedade pelo café, entretido a preparar pires e mais pires de tapas e copitos e mais copitos de vinho branco. E eu toca de esperar. E ele toca de não me ligar nenhuma. Quando já estava quase a lembrar-lhe que tinha pedido um café ele pôs junto a mim, no balcão, os 13 copitos de vinho branco e os 13 pires de tapas que tinha estado a preparar. Explicou-me então que, quando qualquer forasteiro entrava naquela sociedade, pela primeira vez, era tradição que cada um dos presentes lhe oferecesse um copito de vinho e um pires de tapas. O forasteiro deveria aceitar todas as tapas e copitos e, depois de comer e beber, deveria oferecer uma rodada aos presentes.
Parece que, tirando a mulher do Presidente da Câmara (e essa era da terra), nenhuma outra tinha entrado assim sozinha na dita sociedade. Eu era portanto a primeira a submeter-me à prova.
Assim sendo, bebi os 13 copitos de vinho branco, comi os 13 pires de tapas tomei o meu tão desejado café e paguei a rodada.
E ... passei todo o resto do dia com a minha sogra a fazer-me chá e a pôr-me rodelas de batata na cabeça.
Porém tinha dado um enorme passo na aceitação.