Silenciosamente perderam-se os passos
Raivosamente secaram-se os prantos
Convulsivamente calaram-se as vozes
E ficou deserta a terra desfolhada
***
Dizem que depois do nada
Só há morte
Um passeio no mundo das palavras e das emoções
Era o primeiro Natal que passava fora de casa. Foram dez meses a tentar sobreviver com o que ganhava no escritório. Porém a vida era muito mais difícil, do que as minhas piores previsões, quando decidira fazer-me à estrada. O dinheiro que trouxe rapidamente se esgotou. Tive que pagar a pensão adiantado, comer e pagar transportes durante um mês antes de receber e, ainda, comprar livros e fotocópias para a faculdade. Foi como se o meu mundo ruísse antes de o construir. As luzes e os enfeites do Natal faziam-me sentir terrivelmente só. No bolso do casaco uma carta em que a minha mãe me falava como se eu estivesse na maior. Só mesmo a minha mãe para desconhecer o quanto a vida era dura fora do mundo artificial onde sempre vivera!.. Ao deixar a terra e a família jamais poderia imaginar quanta coisa perderia pelo caminho. Contando os tostões e, sem eira nem beira, era como se tivesse perdido outros atributos do passado. Nenhuma das pessoas, que antes me adulava, me voltava a procurar quando me encontrava ainda que, por delicadeza, me pedisse a morada ou o telefone. Apenas com uma única excepção. Nessa altura, enchi-me de brios e fiz questão de pagar o almoço num restaurante incompatível com a minha bolsa. Esta temeridade deixou-me em dificuldades o mês inteiro e nunca mais a repeti. Luzes, montras enfeitadas, pessoas que cruzavam comigo carregadas de embrulhos. E, dentro do meu bolso, uma única moeda que dava à justa para um café. Recordo, também, a carta insultuosa do meu pai e que rasguei sem acabar de ler. E tudo porque quis viver igual a mim própria, trabalhando e sentindo como qualquer pessoa normal.
Confesso que vivi, diz Pablo Neruda. E eu também. Feito um balanço dos anos decorridos sinto que foram vividos de punho aberto, ricos em experiências e em diversidade. Acho que vivi várias vidas numa só vida e, por isso, costumo dizer: quando partir não me chorem.
Fui filha única numa família que tinha recursos acima da média. Quando fui para a escola, uma escola oficial que não distava muito da casa dos meus pais, tive que tomar contacto com outras crianças que viviam com dificuldades. Essas crianças, recomendavam os meus progenitores, são crianças "malcriadas" com as quais não me devia relacionar. Não fico convencida com as recomendações e até gosto daquelas crianças soltas, que dizem o que sentem e brincam, riem e zangam-se consoante a vontade. Porém, mal chego à escola, a professora imediatamente me tira todas as ilusões de uma aproximação.
A filha do sr.engenheiro não pode ser contaminada por aqueles seres impuros e, assim sendo, senta-me na primeira carteira (lugar de honra) tal como a outras crianças provenientes de certas famílias. Depois, deixa uma fila vaga, na horizontal, e, a seguir, senta as outras. Apesar dos meus 7 anos olho, com revolta, para aquela disposição e os meus olhos caem sobre uma garota mais velha que, desde que chegara, não desviava de mim a atenção. Era uma miúda repetente, e alta para a idade, com umas sandálias extremamente velhas, e cozidas com corda, que usava sem meias em pleno Inverno. O cabelo era preto e mal penteado e as roupas velhas e pouco limpas. Chamavam-lhe a "lebre que foge p´ra toca" porque ela fugia, frequentemente, para uma toca onde se refugiava dos maus tratos da casa e da escola. Poucas meninas, e apenas as do grupo detrás, se aproximavam desta criança de 9 anos.
Quando tocava para o recreio a professora garantia, com severidade, a separação dos grupos e eu comia o meu farnel, sem qualquer apetite. Porém "lebre que foge p´ra toca" não tira os olhos dos meus movimentos e do meu lanche enquanto retira, de um guardanapo amassado, um bocado de pão muito escuro, pingado em banha ou em azeite. Porém, aquele pão, de uma qualidade rústica que nunca entrara em minha casa, era também, para mim, de grande atracção. E, assim, passávamos o lanche a olhar uma para a outra e sem tirarmos os olhos do que cada uma comia. A vontade de trocar o farnel começou a criar forma em mim e nela mas a professora, sempre atenta, não dava oportunidade. Porém, um dia, em que uma aluna se magoou a jogar à cabra-cega, o meu lanche foi ter às mãos de "lebre que foge p´ra toca" enquanto o pão, escuro e engordurado, passou para as minhas mãos. Comemos os nossos lanches com um apetite, jamais igualado, todavia, eu fiquei com o guardanapo de xadrez vermelho da "lebre que foge p´ra toca" o que me denunciou.
A professora depois de ter batido desalmadamente à "lebre que foge p´ra toca"(embora a mim nem sequer tenha encostado um dedo), achou por bem avisar o senhor meu pai desta "lamentável" ocorrência. O meu pai ficou possesso mas não costumava passar à acção. Por isso, pôs a minha mãe ao corrente para que esta pudesse actuar. Depois de uma valente tareia, acrescentada por pequenos castigos e palavras duras, retomei os meus lanches, sem voltar a trocá-los, e sem compreender o motivo porque não devia fazê-lo.
Todavia a marca de uma injustiça, que é indelével na alma de uma criança, essa ficou sempre a germinar. E eu sonhava, a olhar o mar e os barcos que partiam, com outros mundos que me chamariam e que iria desbravar sem medo de repartir o pão, sem medo de brincar, sem medo de me encontrar.
E eu fui por esses mundos mas nós voltamos sempre aos mesmos lugares.
E foi num desses regressos, num passado recente, que soube da "lebre que foge p´ra toca" que, afinal, se chama Cecília.
E soube que ela manifestou, a familiares meus, um grande desejo de me voltar a ver. Tantos anos se passaram sobre as nossas vidas, que era já impossível reconhecermo-nos, a não ser através de um farnel trocado algures no tempo.
Curiosamente, Cecília reconheceu-me, de imediato, mal entrei no café onde me aguardava.
Sorriu com lágrimas e olhando-me nos olhos perguntou:
-Ainda trocavas o lanche?
-Ainda, respondo eu.
E, pela primeira vez, pudemos abraçar-nos.
O episódio que vou contar passa-se em Barrancos já lá vão 22 anos. Hoje Barrancos está diferente. Desde o dia em que a água começou a correr das torneiras, ao som da sambomba e dos foguetes - enquanto o aguadeiro se suicidava, perdida a vontade de viver numa realidade que o excluía -, que um novo ciclo foi iniciado. Mas, eu reporto-me a esse passado distante, em que passava lá uma parte das férias, e em que aprendi a arte de pescar o achegã.
Quando nos apaixonamos sentimos que tudo adquire uma dimensão nova. Olhamos as mesmas coisas com outros olhos e, mesmo aquilo que nos faria rir se não estivéssemos apaixonados, passa a ser a coisa mais natural deste mundo. É o desabrochar de uma interioridade onde tudo parece estar certo. A nossa sensibilidade fica mais atenta a pormenores que antes nos eram indiferentes. As sensações e as aprendizagens multiplicam-se e nasce, como por encanto, uma capacidade inovadora, valências nunca antes imaginadas, forças até então adormecidas. Por tudo isto eu passei, quase a entrar nos entas, e por tudo isto enfrentei todas as guerras e tempestades. Cortei com o casamento, com os amigos, com familiares, com tudo o que constituíra toda a minha vida. Cortei até comigo própria como se não houvesse outro caminho à minha frente.
Pouco tempo depois de conhecer o Joaquim estávamos a viver juntos. Esperámos pouco mais de seis meses até nos divorciarmos. Eu fiquei com o meu filho e essa foi a única coisa que não perdi.
Porque a minha entrega foi tão completa que não sobrou espaço para mim. Nem mesmo a ilusão de poder ser eu.
Já não era a mulher irreverente, e sempre bem disposta, com a resposta pronta e a espontaneidade presente. Agora media as palavras, e os gestos, e os meus olhos ficaram baços e frios. As roupas informais, ou de um bom gosto simples, deram lugar a modelos de estilistas da praça que me descaracterizavam e davam um ar, aos meus olhos, fútil. A licenciatura também já não bastava e, por isso, tirei outro curso e especializações, sem saber bem para que serviam, só porque o Joaquim me incitava a tirar. Apostei na carreira, matriculei-me num partido e até ia a missas, casamentos e funerais, sem ser crente, e fazendo o frete, só porque ele fazia questão que fosse. Eu já não existia como pessoa. Era apenas uma extensão dele. E ele era um homem que vivia para o status, o poder e o dinheiro. A princípio eu não via, ou não queria ver. Porém, aos poucos, o meu deus foi mostrando os seus pés de barro e a cair do altar onde eu o idolatrara.
Ao fim de seis anos já não aguentava mais festas e banquetes nem conhecer mais pessoas vazias e desinteressantes. Joaquim sugeria-me, de vez em quando, que seria "conveniente" casarmos. Porém, o meu sonho de viver com ele, para todo o sempre, estava cada dia mais ameaçado. Mas, foi numa certa manhã de domingo em que, na missa, procurava ocultar a minha falta de jeito, e de crença, para lidar com o missal e entoar os salmos, que sofreu um rombo irreversível. Era um suplício que me envergonhava isto de ter que o acompanhar à missa. Sentia que tudo aquilo era rídiculo e, por mais que olhasse para o altar à procura de Deus, a fé nunca me chegava. Curiosamente, ele também não acreditava. Ia para aparecer e falar com pessoas influentes. Eu também não entendia porque é que ele precisava de conhecer tanta gente, de ter uma empresa, ser administrador de outra do Estado e ainda dar aulas na Faculdade. Nada para mim fazia sentido mas, mesmo assim, ainda lhe dedicava uma devoção sem limites que não me permitia encarar a vida sem ele.
Naquela tarde tinhamo-nos zangado pela primeira vez. Ele tinha-me admoestado sobre o meu comportamento na missa e tinha voltado a insistir na ideia do casamento. As lágrimas quase me saltaram e não sou de chorar. A ele não lhe passou despercebida a minha angústia e, como muitas vezes fazia, foi buscar-me um ramo de flores amarelas, campestres, que uma vez lhe disse que gostava. Mas eu gostava daquelas flores espalhadas pelos campos, com as raízes presas à terra. Vê-las cortadas e a morrer nas jarras era para mim motivo de desgosto.
Foi quando me estava a vestir para mais um jantar, e olhei a minha figura reflectida no espelho, que me dei conta que aquela mulher não era eu. E pela primeira vez apercebi-me que ia começar a odiá-lo. E eu precisava amá-lo para que a vida tivesse sentido.
Só havia uma forma de conservar o que de muito especial tínhamos tido. Momentos inigualáveis dos quais nunca me arrependi.
Ele não fez nada para me reter. Apenas me pediu que esperasse uns três dias para eu sair quando ele estivesse ausente no estrangeiro. Contudo, mal deu de costas, procurei pôr tudo em ordem e não esperar pelo seu regresso. A tarefa estava facilitada pelo facto de nunca me ter desfeito da minha casa e ter trazido para esta poucos dos meus pertences. Procurei não levar nada que fosse valioso, nem mesmo roupas. Uma ou outra coisa simbólica talvez. As ilusões precisam de um espaço grande mas as realidades cabiam numa mala pequena. Uma mala que fechei sem que a mão me tremesse.
Apesar de ter sido a pessoa mais importante da minha vida, foi também aquela de quem mais me afastei. Apaguei dele todos os registos das minhas agendas, mudei os números de telefone e emiti todos os sinais de que não queria ser encontrada.
Só nos voltámos a ver cerca de três anos depois. E por acaso na exposição do corpo humano. Soube então que, tal como eu, continuava sozinho. Porém o seu ar era o de uma pessoa que queria e sabia o caminho que trilhava. A separação imprimiu em cada um de nós marcas que nos demarcavam. De jeans e mala ao tiracolo, eu nada tinha a ver com aquele homem elegante e sofisticado. Demos de caras e ele riu olhando-me de alto a baixo: - Agora és mesmo tu! E eu respondi: E tu também agora és mesmo tu! Ele ficou sério mas depois com aquele sorriso lento que me amolecia disse olhando-me nos olhos: - Eu não teria assim tanta certeza.
Despedi-me apressada e recusei o convite para o café. Senti que ainda havia algum fogo sob as cinzas. Um fogo que, no meu caso, não pretendia apagar e, muito menos ainda, reacender.
Dedico este poema a uma senhora que conheci rica e que, exactamente há dois dias, se me dirigiu, na rua, para me pedir dinheiro para aviar uma receita médica. Disse-me que tinha a casa à venda e que estava numa situação tão desesperada que decidiu estender a mão à caridade. Enquanto me contava as lágrimas não paravam de cair.***
Passou por mim, pela primeira vez mendiga,
ela que outrora ordenava e foi rainha.
Passou por mim, e estava tão sozinha,
nos hábitos que acusavam a fadiga.
***
Por umas moedas, de lágrimas consumida,
ela estende a mão pela primeira vez na vida
e também eu, pela primeira vez, ao dar esmola
me senti igual a ela tão mendiga.
Liberta-te, amigo, parte esses grilhões
O dia tinha amanhecido cinzento com uma neblina cerrada que molhava as ruas e as deixava lamacentas e pegajosas. Igual ao dia era o meu estado de espírito naquela manhã. Acordei mal-disposta e não atinava com nada do que fazia. Para ajuda o carro não pegou e o comboio vinha atrasado. E logo naquele dia em que tinha que preparar uma série de relatórios e tinha uma das empregadas doente!...