Não devia haver classe sociais. Aliás sempre achei que não havia. Não pertencemos todos ao género humano sem distinção de raças ou de credos? Por quê então considerar pessoas como sendo do outro lado? Como não fazendo parte da família humana? Era assim que eu pensava mesmo quando via grandes diferenças na forma como viviam certas pessoas. Tinha pena que fosse assim mas nunca subestimei essas pessoas.
Talvez esta visão fosse muito ingénua e eu demasiado bem intencionada. Porém a vida tratou de me fazer menos boa e de mostrar-me que afinal existiam classes. E não só existiam como as pessoas as sentiam e se sentiam de maneira diferente.
E foi o meu marido que me ensinou tudo isso. E ensinou-me de uma maneira crua que eu não estava preparada para aprender. Porque acreditava no companheirismo que me levou a casar num dia 7 de Junho de um ano qualquer. Numa cerimónia no registo que não demorou mais que 7 minutos. Não levámos convidados e até nos esquecemos de levar padrinhos. Tivemos que arranjar dois voluntários à pressa que serviram para mim e para ele. Eu vestia as minhas jeans surradas bem diferentes do vestido de noiva tradicional mas estava quase feliz. Estupidamente feliz por procurar caminhar em sintonia com um desconhecido que, por uma razão qualquer, se cruzou num dado momento no meu caminho. Um momento de fragilidade, diga-se em abono da verdade. E em momentos de fragilidade ama-se o amor mais do que a pessoa.
Porém quando comecei a olhar para a pessoa e a interrogar-me sobre ela descobri que tinha medo. Medo do homem que tinha estado na guerra. Medo do homem que vinha medalhado e com cruz de guerra por ter matado. Olhava-lhe para as mãos e pensava que tudo me era estranho que não havia refúgio dentro de mim própria.
Este ser que me amava, ou que dizia amar-me, tinha dentro de si todo um conjunto de sentimentos tumultuosos. E eu estava no centro desse tumulto. Da paixão doentia que lhe despertava. Da sua submissão extrema e seus desvelos exagerados, do seu ódio profundo e do seu incomensurável sentido de revolta.
Se a aceitação entre mim e a família dele foi aberta e natural entre ele e a minha tudo foi diferente. Ele ia de pé atrás contra a família "burguesa," inimiga das pessoas como ele, e responsável de todos os males que lhe tinham sucedido. Ele defendia, com ódio, a desigualdade em que os ricos apareciam como verdeiros cafajestes que despojavam os pobres dos bens e da alma em proveito das suas futilidades. Era como se os meus pais e eu tivessemos a culpa que ele tivesse ido aos catorze anos para a escola e se formasse em economia e não em medicina como teria desejado.
Os ataques sistemáticos à minha família, a forma como gozava a minha mãe, tudo me doía sobremaneira, porque, mal ou bem, aquelas eram as minhas raízes por muitas e longas que fossem as paragens em sítios distantes.
E um sentimento, que antes não existia em mim, começou a criar forma. É que também agora eu odiava tudo aquilo que ele representava, os ideais que defendia e as coisas que gostava.
A minha capacidade de amar e compreender esgotava-se de dia para dia perante tanta intransigência. A minha sogra chamava-lhe a atenção mas ele não queria saber.
O que parecia vir a ser um relacionamento tranquilo passou a deslizar entre dois extremos: o de uma dedicação absoluta e de uma raiva latente pronta a explodir ao menor passo em falso.
E nada o fazia mudar. Nem mesmo o nascimento do filho. Apesar de excelente pai, colaborante nas tarefas e nas responsabilidades, ele vivia para me contrariar e, uma vez, frente ao meu filho, ousou bater-me quando o desafiei.
A partir daí começámos a viver com alguma independência. Eu tinha-me licenciado e estava agora numa posição profissional que me ocupava mais tempo fora de casa. E eu própria procurava prolongar esse tempo. Ele tomava conta da casa e deixava-me ir. Comecei a sair e mesmo a viajar sozinha porque com ele era um verdeiro tormento. Apesar disso o casamento durou 17 anos e as relações não passaram de simples amizades.
Às vezes dava comigo a desejar algo diferente a olhar para outros casais que passavam por períodos apaixonados. E interrogava-me como seria sentir algo assim. Algo sem forma nem objecto preciso coexistia comigo, sonhava e amava o infinito e sofria por não ser encontrado.
Porém não era infeliz. Encontrei uma forma de vida que, a determinada altura, quase me satisfazia. E quando pensei que a vida seria mesmo isso essa adaptação permanente, sem grandes sobressaltos nem contrapartidas, encontrei alguém que iria dar início a um novo ciclo.
Àlguém a quem quis de forma absoluta. Mas, ao contrário do que o meu marido me disse, não procurava no outro o mundo burguês da minha infância. Porque esse era um mundo do qual levei a vida a fugir.