Alex nasceu no dia 1 de Abril faz, no próximo, 15 anos. Filho duma parente que caiu no mundo da droga, ele viu pela primeira vez a luz do dia numa fase da minha vida algo conturbada. Depois do divórcio, e duma nova paixão, juntaram-se-me outras solicitações impostas pela nova vida.
Confesso, também, que já estava cansada de socorrer a infeliz criatura mãe dele que me inspirava sentimentos que iam da compaixão à revolta e mesmo de alguma falta de paciência.
Várias vezes acorri em situações extremas para a ir resgatar à polícia. Ou ao hospital, após várias tentativas de suicídio. Mas, sinceramente, achava que tinha chegado ao meu limite. Por isso, e por mais que insistissem comigo para ir ver o Alex, decidi que não ia e pus um ponto final no assunto. O Alex viveu, até aos 4 anos, entre a segurança social e os pais drogados.
É nesta fase que a mãe tenta, mais uma vez, o suicídio atirando-se com o carro duma falésia donde, aparentemente, seria impossível sobreviver. Mas os milagres acontecem e, embora esfacelada, a Xana não morreu. Porém, quando o helicóptero a resgata, ela pede que me contactem para que eu lhe olhe pelo filho.
Foi então que vi o Alex pela primeira vez. Era magrito mas tinha um ar adulto e compenetrado. Olha para mim, como a pedir-me desculpa de estar vivo, e eu sinto o coração apertar-se-me. Convido-o a ir ao Parque das Nações e procuro distraí-lo. Alex segura-me a mão, olha tudo com olhos gulosos, mas nada pede. Nunca está cansado, nunca tem fome, nunca tem sede, não precisa ir ao WC. A sua mão aperta a minha com mais força e pergunta constantemente: eu não te aborreço? não estás cansada de mim?
Porém aos poucos, e depois deste passeio, Alex começa a sentir-se seguro. Já não se contenta com 2 voltas do carrocel e insiste sempre noutra e mais noutra. Era altura de começar a pôr regras para não passarmos do 8 ao 80. Cada vez que saíamos eram duas voltas de carrocel e outros mimos, mas tudo com conta peso e medida. Tal como sempre fiz com o meu filho.
Quando me separei do Joaquim, Alex veio viver comigo definitivamente. A mãe fora mais uma vez internada e eu e ele começámos uma vida nova. Sempre bem disposto e acatando tudo o que lhe dizia, depressa se revelou um excelente estudante, um óptimo companheiro e uma criança aparentemente feliz e bem integrada.
Tudo o que eu lhe dissesse era sagrado. A confiança em mim era ilimitada. Por sua vez ele deu-me um sentido à vida como nunca teria imaginado. Rejuvenesci a brincar e a estudar com ele e a interessar-me por aquele mundo juvenil rico e matizado.
Falávamos sobre o pai e a mãe de forma natural procurando eu sempre explicar-lhe que eles o amavam só que tinham enveredado por uma vida em que não era possível tê-lo com eles.
Alex ouvia e ficava pensativo. E quando se lhe perguntava o que queria ser um dia mais tarde, ele respondia que queria ter uma profissão em que ganhasse muito dinheiro porque precisava ajudar a mãe.
Também no dia da mãe Alex fazia, ou comprava, duas pequenas lembranças: uma para mim e outra para a mãe. A da mãe ficava sempre no quarto dele até uma oportunidade. E o Alex sentia que a mãe não estava perdida porque ele tinha uma prenda para ela.
Quando o Alex fazia anos, ou pelo Natal, eu pedia-lhe que fizesse uma lista do que pretendia e dos respectivos preços. Feita a soma dava-lhe um cartão carregado com um pouco menos dinheiro que a soma da totalidade dos bens pretendidos. Pretendia com isso obrigá-lo a fazer contas e opções. E Alex fazia. Escrupulosamente. Uma vez, baixando a qualidade de alguns dos bens a adquirir, conseguiu comprar tudo e ainda me devolveu algum dinheiro.
Num Natal, há cerca de 3 anos, depois de eu carregar o cartão como era costume, Alex, com o olhar baixo e a voz sumida, pergunta se não poderia ficar com o dinheiro que não gastasse. Explicou-me que até preferia não comprar nada e ficar com o dinheiro todo para dar à mãe que estava a dormir no Casal Ventoso. Expliquei-lhe que não adiantaria dar dinheiro à mãe mas que poderia ajudá-la convencendo-a a tratar-se.
Xana olha para mim como quem olha para um mundo vazio e desconhecido. Insisto em arrancá-la dali mas ela faz-me ver que não há mundo lá fora nem amanhã para ela. Que perdeu tudo, que não tem nada por que lutar.
- Tens o teu filho - argumento sem forças.
- Mas o meu filho já não é meu, é teu, responde em prantos. E eu quero que continue a ser teu porque está melhor contigo do que comigo.
Então eu conto-lhe como o Alex a tem acompanhado e como espera poder ajudá-la um dia. E uma luz começa a brilhar-lhe nos olhos cansados.
Alex e Xana estão juntos há dois anos. Eu acompanho o relacionamento dos dois e orgulho-me de vê-la trabalhar na indústria hoteleira até à exaustão, para dar ao Alex tudo o que pode com o dinheiro dela. Recordo-me que, quando comprou o primeiro presente ao Alex, de me ter dito que teve vontade de dizer na rua, a cada transeunte que passava:
- vêem aquele garoto? É meu filho e aquele fato de treino que ele leva fui eu que o comprei.
Contudo devo confessar que sinto uma saudade enorme de ter o Alex comigo. Olho o quarto dele, que se mantém intacto, e sinto o seu vazio. Alex sabe que aquele quarto está sempre pronto a recebê-lo mas nunca me falou nisso e ainda bem. Recebi hoje uma carta do Tribunal de Menores para a audiência marcada para 13 de Março.
É quase Primavera e logo estará a chegar novamente o dia 1 de Abril em que terei que carregar o cartão do Alex.
A vida continua.